Ansiedade, vergonha, hábito e alívio
É muito fácil viver a vida correndo atrás de desejos. Mais fácil ainda é confundir esses desejos com sonhos, expressões de felicidade, missão, meta, objetivos ou conquistas. Desde muito jovens aprendemos que é preciso “ser alguém na vida”, ocupar um espaço na sociedade, ser responsável e trabalhador. O problema é quando esses valores se confundem com objetos, de qualquer tamanho. Pior ainda é quando confundimos pessoas com objetos e vice-versa.
Meus vizinhos, por exemplo, têm três carros para cinco moradores. Logo serão quatro carros porque a filha mais nova já está em idade de dirigir e, não duvido, vai ganhar ou comprar um carro também. Vivo no mesmo endereço há 15 anos e não consigo lembrar de um único domingo em que eles não passaram lavando carros. Isso é… Todos os poucos domingos que passei em casa. Só me lembro de ter lavado (e depois encerado) meu ex-carro uma vez em todo esse tempo – quando decidi vendê-lo.
Por dez anos tive um Land Rover Defender 110. Era “o carro dos meus sonhos”.
Na verdade, meu cérebro bem treinado aceitou alegremente cair na armadilha de associar um conceito a um objeto. Hoje percebo isso claramente. Aventura para mim rapidamente passou a ser ter um Land Rover, como se esse objeto completasse a imagem que eu queria para mim mesmo, como se fosse um manifesto público da minha opção ideológica. Era como se eu dissesse: “olhem para mim, gosto de aventura, tenho compromisso com esse conceito e a prova disso está no carro que dirijo!”. Já que somos constantemente julgados e catalogados, eu queria que pelo menos o rótulo fosse minimamente correto.
Então precisei de mais dinheiro para construir um segundo andar em casa e vendi o carro para comprar tijolos e cimento. Foi muito menos doloroso do que imaginei. Vendi o Land Rover Defender 110 por 90% do valor pago dez anos antes! Ótimo negócio, dirá qualquer economista. Mas o lucro maior foi o alívio imediato que senti. Literalmente, foi como um peso monstruoso tirado dos meus ombros… Eu não pagava seguro há anos, porque simplesmente não compensava; tinha medo de estacionar em qualquer lugar; gastava até 20% do valor do carro anualmente em manutenção preventiva; regularmente preferia usar ônibus e metrô para me locomover na cidade, porque o trânsito é insuportável e o custo bem menor… Enfim, o carro é subutilizado e custava uma fortuna para manter.
Considero esse episódio do Land Rover Defender 110 na minha vida como um pequeno desvio do caminho correto. Não por causa do carro em si, mas devido ao equívoco que vivi em relação a ele. Acreditei, por conveniência ou preguiça de pensar, que estava conquistando algo e evoluindo de alguma forma ao associar a visão que tenho de mim mesmo a esse objeto, enquanto em realidade estava apenas me confundindo com ele. E esse equívoco vale também para a casa onde moro, as roupas que visto, o corpo que tenho e, em pior escala de confusão, às amizades que cultivo ou à companheira que tenho. Pessoas não são troféus. Objetos não nos definem.
NOTA: O autor desse texto, Guilherme Cavallari, dirige a Kalapalo Editora e é autor de 16 livros contendo roteiros, técnicas, conceitos e equipamento para prática de esportes e turismo de aventura. Seus livros encontram-se disponíveis na LIVRARIA KALAPALO e em mais de 250 pontos de venda em todo o país, listados na sessão ONDE COMPRAR do site.
Links para outros textos de Guilherme Cavallari que podem interessar:
10 Desculpas Esfarrapadas (Para Não se Aventurar), A Bicicleta Invisível, Bikes, Amoras e Transgressões, (Des)Atenção Plena, O Brasil Está Fora do Mapa, Que Mountain Bike Comprar?.
Não pelo status… mas estou me sentindo exatamente assim: intoxicado. Minha meta pra este ano é voltar a ter um carro só para a família (que vai ser como todos os outros, usado).
Vc nunca pensou na Land como uma simples ferramenta de trabalho? Não acha também que “sentir vergonha” de um bem que possui é meio injusto consigo mesmo? Talvez um complexo de inferioridade em função de achar que, por seus amigos ou conhecidos não poderem, você também não deveria poder?
http://www.soldieradventures.com
Sensacional Guilherme… Sensacional. Parabéns por compartilhar conosco esse pensamento. Abrir-se dessa maneira é para poucos. Andar com automóveis que custam mais dinheiro do que jamais uma pessoa ganhará na vida me soa obsceno. Mas, cada um é cada um. Admiro, ainda mais seu trabalho, e você como ser humano depois desse compartilhamento de experiências.
Abraços!
Muito bom Guilherme, esse é um dilema que volta e meia retorna pra mim: quanto equipamento eu preciso pra me aventurar. As vezes eu fico me privando de fazer viagens por não ter um 4×4, ou o saco de dormir perfeitamente adequado, etc. Mas também me lembro do tipo de estrada na qual eu enfiei meu velho Ford Ka 1.0 (entrou lama até por cima do motor…) quando ia pro PETAR. A verdade é que quanto mais conhecimento a gente tem, menos equipamento precisa.
Esses posts filosóficos são incríveis e passam uma experiência muito legal para o leitor, basta ver a reação nos comentários!
A aventura está em todos os aspectos da vida e essa história da Land Rover foi uma das aventuras que mais me surpreenderam no blog.
Abraços!
Guilherme,
Realmente esse é um aprendizado curioso. Confesso que aprende-se muita coisa também lendo a sua história aqui!
Grande abraço
Lincoln