Último roteiro de trekking da viagem… El Bolsón-Cochamó-El Bolsón por trilhas diferentes… Da Argentina para o Chile e de volta para a Argentina por dois passos internacionais exclusivos para pedestres… 143 quilômetros de caminhada por bosques, com muita lama, alguma chuva, montanhas rochosas de mais de 1.000 metros verticais e, finalmente, o avistamento de um puma… Sim, eu consegui ver um puma!
Em El Bolsón encontrei meu amigo Hendrik Fendel – mountain biker, trekker, fera em GPS, gente boa e companheiro ideal, com quem já pedalei muito pela Serra Catarinense e Serra Gaúcha no mapeamento do Guia de Trilhas Serra Geral (BluGrama) – para caminharmos juntos pela Patagônia. Ele veio especialmente do Brasil para fazer comigo esse último roteiro de trekking e trouxe tudo programado, pesquisado e plotado para nossa aventura. Um descanso para mim nesse final de viagem.
Há mais de quatro anos eu queria chegar ao famoso Valle Cochamó pela Argentina, desde que conheci e mapeei o acesso chileno a esse paraíso de escaladores em rocha em 2009, para o Guia de Trilhas Carretera Austral. Deixei a bike e o bike trailer em uma pousada em El Bolsón e fomos, Hendrik e eu, de carona com o dono de uma loja de aventura, até o Paso El Manso, numa saída da Ruta 40 na localidade de Río Villegas. De lá começamos a caminhar.
No primeiro dia, 18/03, segunda-feira, caminhamos apenas 3,8 quilômetros, do controle argentino de fronteira, na Gendarmería Paso El Manso, até o posto de Carabineros de Chile no Paso El León, onde acampamos. Foi no gramado da Estancia El León, ao lado do Valle Río Leones, às 1:15 da madrugada, que eu vi um puma…
Acordei com o tropel de cavalos, que pastavam na grama ao nosso lado. Um correria nervosa que fez o chão tremer. Num salto, saí do saco de dormir e meti a cara para fora da barraca. Tinha medo que os cavalos, excitados por alguma coisa, pisoteassem a barraca conosco dentro. Dormíamos com a varanda da barraca aberta para minimizar a condensação. No céu havia meia lua crescente, que iluminava o suficiente para ver com alguma facilidade o entorno. Nem dois segundos olhando o gramado e vejo passar, a dez metros de mim, um animal grande, volumoso, musculoso, de contornos arredondados, orelhas pequenas, caminhando lentamente. Um puma adulto – quase ouvi minha mente falando. Em um segundo pensei um monte de coisas… Acordo o Hendrik ao meu lado? Saio da barraca? Faço algum ruído?… Mas decidi pegar minha lanterna e iluminar o bicho. Tudo o que eu queria era ter certeza, confirmar com os olhos o que a mente já havia confirmado, mas a razão teimava em duvidar. Minha lanterna estava com as pilhas fracas e a luz atrapalhou mais do que ajudou, criou uma cortina de umidade e névoa diante de mim. O puma desapareceu no escuro… O pior de tudo foi que minha máquina fotográfica estava ao lado da lanterna, no mesmo bolso lateral de dentro da barraca. Se eu tivesse pegado a máquina e feito uma foto, teria iluminado o puma muito melhor com o flash e ainda teria a foto para confirmar e comprovar o avistamento… Nunca vou me perdoar por esse erro!
Excitado, incapaz de dormir, imediatamente após a passagem do bicho, acordei o Hendrik. Ele também teve dificuldade em dormir depois… Dois insones numa casinha de nylon, na Patagônia, pensando em pumas…
No dia seguinte, 19/03, terça-feira, caminhamos quase toda a extensão do belíssimo Valle del Río Leones. Subimos de 428 metros acima do nível do mar a 1.450 metros, até o topo da montanha que nos tirou do vale e nos levou para o platô da Laguna Brava. Um subida estúpida, dura, íngreme, suada, ziguezagueando encostas, que quase não sentimos de tão bonita a paisagem. Da Laguna Brava, subimos e descemos outra serra, bem menor, tudo por dentro de bosques úmidos e lameados, sombreados e perfumados, até despencarmos a 600 metros de altitude para a margem do Lago Vidal Gormáz. Foi um dia longo, de 24 quilômetros de caminhada com um intervalo de 45 minutos de almoço. Montamos a barraca faltando 40 minutos para o por do sol, já no lento e agonizante luscofusco patagônico.
Quarta-feira, 20/03, foi um dia escuro, chuvoso, com lama até os joelhos, que nos levou do Lago Vidal Gormáz até o Refugio El Arco, ao lado da cachoeira El Arco e a origem do Rio Cochamó. Míseros 16 quilômetros em oito horas de deslocamento. Quase não vimos o horizonte porque estávamos todo o tempo encerrados dentro do bosque. Chegamos ao barracão do refúgio molhados e debaixo de um céu agourento, que prometia chuva grossa… Promessa confirmada durante toda a noite. Conseguimos fazer uma fogueira dentro do refúgio, em local apropriado, que ajudou a secar – e defumar – nossas roupas e calçados. De madrugada a temperatura caiu para números negativos e congelou poças de água no caminho.
Quinta-feira, 21/03, o dia amanheceu incrivelmente frio e ensolarado. Céu azul sem nuvens. Descemos do refúgio até a entrada do vale Cochamó e suas montanhas de granito acinzentadas, gigantescas, que possibilitaram o apelido de “Yosemite da América do Sul” à região. Escaladores em rocha do mundo todo visitam o vale no verão e se deslumbram. Caminhamos sob o sol, fazendo fotos a cada cem metros, felizes e encantados, até montarmos acampamento no Camping La Junta, aos pés das montanhas rochosas mais altas e belas do vale.
Sexta-feira, 22/03, saídos de La Junta e caminhamos ao lado do Rio Cochamó, até a Vila de Cochamó, no Estuário de Reloncaví, no Oceano Pacífico. Novamente muita lama, dessa vez por mata ciliar densa. Um dia de 22 quilômetros de caminhada até a ponte sobre o Rio Cochamó, na estrada de terra que conecta a Vila de Cochamó com a Vila Río Puelo – nosso próximo ponto de destino para pegarmos uma outra trilha, de volta a Argentina. Dormimos em camas e tomamos banho em um pousadinha simpática e limpa – Hostal Maura – com cara da casa de vovó.
No sábado, 23/03, pegamos um ônibus até o Lago Tagua Tagua, embarcamos em uma balsa de pedestres e veículos na Punta Canelo e desembarcamos, uma hora depois, na Punta Maldonado, onde um micro-ônibus empoeirado nos esperava para nos levar até Llanada Grande – um aglomerado de meia dúzia de casinhas na beira da estrada de terra. De lá começava nossa trilha rumo à Argentina. Caminhamos apenas 5 quilômetros, no fim do dia, da beira da estrada até as margens do lindo Lago Azul, onde montamos acampamento ao lado de uma estância antiga e bem arrumada.
Domingo, 24/03, deixamos as águas do Lago Azul para chegar às águas do Lago de las Rocas, na sua extremidade sul, onde outra trilha nos levou até bem próximo do Lago Inferior e ao posto dos Carabineros de Chile para carimbarmos nossos passaportes – minha última saída do Chile nessa expedição. Caminhamos por bosques fechados e pastos de fazendas por cerca de 16 quilômetros e acampamos em um campo de futebol de frente para o Lago de las Rocas. A lua estava quase cheia e ficamos até os últimos raios de sol olhando as águas, tomando capuccino com rum, brindando a vida e conversando sobre aventura.
Na segunda-feira, 25/03, já oficialmente fora do Chile mas ainda caminhando por terras chilenas, cruzamos por bosques fechados toda a extensão do Lago Inferior até sua conexão, via um trecho curto de rio volumoso e mexido, muito bonito, com o Lago Puelo e a Argentina. Essa trilha é conhecida como Sendero los Hitos, mas quase todo mundo visita a fronteira entre os dois países de lancha a motor, saindo da vila de Lago Puelo, seguindo a tradição do mínimo esforço. Foram 15 quilômetros fáceis, por trilhas bem marcadas e conservadas, até um acampamento semi-selvagem no Parque Nacional Lago Puelo – havia banheiros, mas com portas trancadas.
Terça-feira, 26/03, com carimbos argentinos nos passaportes, caminhamos por 13 quilômetros até uma passarela sobre o Rio Azul, na periferia da pequena vila de Lago Puelo, até a Ruta 40. Fizemos uma parada rápida em um vendinha local, atacamos o estabelecimento como dois gafanhotos mutantes famintos e conseguimos uma carona até El Bolsón, a menos de 15 quilômetros de distância. Nosso motorista e bom samaritano, o argentino Hugo, dirigia uma picape Ranger que não podia ultrapassar os 70 km/h – começava a trepidar e parecia que soltaria todos os parafusos. Ele tinha uma coleção de CD com música de discoteca dos anos 70 e 80 da banda CHIC. Tocava 30 segundos de uma música… Ohhhh, freak out! Le Chic, cest chic! Freak out! Freak out! Le Chic, cest chic! Freak out!… E já passava para outra… Everybody dance, uhuuu clap your hands, clap your hands…30 segundos e vinha outra… Good times. These are the good times. Leave your cares behind. These are the good times. Good times. These are the good times… Enquanto eu chacolhava o esqueleto, dolorido da caminhada, no banco de trás, lembrando dos meus tempos de adolescente…
Fim da aventura. Faltam dois dias de pedal e menos de 120 quilômetros até Bariloche, onde termino minha saga de seis meses e 6.000 km pela Patagônia. Já sinto uma enorme vontade de voltar para casa e retomar, com muito mais alegria, a rotina de vida urbana. Parece que foi ontem que comecei a planejar essa viagem e, ao mesmo tempo, parece que foi em outra encarnação. Quanta coisa vi, vivi, senti… O tempo não parece ser medido por horas ou dias, mas por sensações e experiências.
Link para o CRONOGRAMA da EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA no blog:
https://www.kalapalo.com.br/index.php/cronograma-estimado-expedicao-transpatagonia/
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