Relato e fotos da temporada de expedições da KALAPALO EDITORA na Patagônia chilena durante o verão de 2017/18
Eu pedalava alguns quilômetros à frente do Ricardo e sorria feliz da vida. Numa descida longa e sinuosa, que me levou do topo da montanha até às margens do Lago General Carrera, cheguei a 70 km/h. Eu me sentia uma criança num parque de diversões. Faltava pouco para completar 67 km pedalados num dia duro, de frio, garoa e cheio de subidas e descidas. Comecei a procurar um local de acampamento.
Num trecho plano da estrada, na entrada para uma casa, vi um cartaz com uma mensagem escrita a mão em hebraico. Em geral, essas mensagens no caminho indicam hospedagens muito simples e baratas, direcionadas ao público menos querido e mais controverso do universo de viajantes da Patagônia: os israelenses.
Depois dos três anos compulsórios aos homens no exército, quase todo jovem israelense trabalha um ano para juntar dinheiro, em Israel ou nos Estados Unidos, e depois parte para uma longa viagem pelo mundo. Eles passam um, dois ou até três anos vagando com o dinheiro acumulado, sempre em grupos e sempre pelos mesmos roteiros. A regra é economizar. Quanto menos gastarem, mais tempo conseguem viajar. Na Patagônia é mais comum ver placas, dizendo: “Não aceitamos israelenses”, geralmente em inglês. Não se trata de antissemitismo. Histórias de israelenses que alugam, por exemplo, uma cabana para duas pessoas e terminam por hospedar doze, são comuns. Em Torres del Paine, eles ficaram famosos por terem incendiado um terço do parque em 2011, depois de acamparem num local proibido e queimarem o lixo para não precisar carregar tudo de volta pra cidade. E mesmo assim, continuam a acampando em locais proibidos para não pagar as taxas de camping.
Junto à porteira fechada havia dois homens, um muito grande e corpulento, outro magro e musculoso. O primeiro parecia chileno e o segundo árabe.
— Boa tarde! — cumprimentei os dois em espanhol.
— Você acredita em Deus? — respondeu o grandão.
— Sim, mas provavelmente não no mesmo Deus que você — respondi e ele me olhou surpreso.
Acostumado à agressiva onda evangelizadora brasileira, normalmente moralista, retrógrada e intransigente, minha intuição dizia que eu estava diante de fanáticos religiosos e completei:
— Deus não é marca registrada dos cristãos.
— Eu concordo — o grandão retrucou e eu relaxei. Erro meu.
— É possível acampar aqui? — perguntei na maior inocência.
— Passe pra dentro!
Esperei Ricardo chegar pra anunciar que acamparíamos no quintal da dupla. Ele chegou bastante cansado e fomos convidados a dormir numa espécie de pequeno galpão de madeira, construído como extensão de um container que servia de residência aos donos da chácara. O grandão se apresentou como Victor e o barbudo como Sair.
O resumo da ópera era que o chileno Victor e franco-argelino Sair passavam o verão na Patagônia hospedando e alimentando mochileiros israelenses em sua cabana por acharem que, por serem judeus, eles eram “os escolhidos de Deus” e mereciam atenção especial. Mas eles também abriam as portas a outros viajantes necessitados, desde que respondessem corretamente à pergunta inicial de: “você acredita em Deus?”.
Segundo Victor, Deus falava diretamente com ele todos os dias. Bastava ele fazer uma pergunta e Deus respondia. O espírito cristão ditava que ele deveria hospedar a alimentar o povo de Israel e outros viajantes gratuitamente. Quem pagava a conta, ainda segundo Victor, era “o Senhor Jesus Cristo”. E por mais que Ricardo e eu questionássemos como essa grana partia do céu e chegava até a Patagônia, não conseguimos resposta convincente. Em troca pela hospitalidade, os hóspedes deveriam ouvir longos e inflamados discursos religiosos de Victor, traduzidos depois para o inglês e o francês por Sair. As premissas básicas eram: 1) os judeu são melhores do que qualquer outro povo; 2) as mulheres são espiritualmente inferiores aos homens; 3) o dinheiro é o demônio na Terra; 4) Victor tem sempre razão.
Pra nossa sorte, um grupo de quatro ciclistas franceses e um ciclista solitário japonês chegaram logo depois e nós fomos poupados de sermos o foco da artilharia da pseudo-religiosa.
Minha paciência foi testada aos limites e acho que passei na prova, porque consegui evitar contestar e confrontar Victor. Ele era alto, forte e corpulento, muito agressivo, beirando a violência, e impunha seus raciocínios sem descanso e sem pudor, por mais absurdos que fossem. Suas verdades eram incontestáveis e tinham origem numa leitura truncada e limitada da Bíblia. Nada de novo. Em determinado momento, ele passou um longo tempo torturando verbalmente o japonês, que falava um pouco de espanhol, repetindo incessantemente que o politeísmo do nipônico era a condenação certa de sua alma eterna. Lembrei da frase: “Quem não aceita a religião do outro, deixa de praticar a sua própria”. Segundo Victor, só podia haver um Deus: o pequeno deus que cabia no espaço entre suas orelhas.
Não tenho respeito algum por pregadores, missionários e zelotes de qualquer religião. O proselitismo, para mim, é o exemplo máximo de arrogância, da ignorância e da falta de criatividade. A fé de cada um é assunto privado e deve ser tratada com discrição. Já morreu gente demais em nome de Deus! Chega!
A generosa hospitalidade que nos foi oferecida era uma isca e nós mordemos o anzol. Não gastamos um centavo pra acampar, comemos pizza frescas no jantar, dormimos de graça em colchões espalhados no chão do galpão e comemos mais pizza fresca no café da manhã… Em troca, os Pizzaiolos de Cristo sapatearam em cima da Bíblia e vociferaram absurdos em nome de Cristo. Mesmo grátis, essa foi a hospedagem gratuita mais cara da minha vida!
Quando estou na Patagônia, na Mantiqueira ou nas Highlands da Escócia, por exemplo, quando estou em contato íntimo com a natureza, dependendo apenas da força do meu próprio corpo para me deslocar, sinto como se houvesse uma espécie de “cola” unindo tudo à minha volta, inclusive eu mesmo. O vento, a chuva, as águas dos riachos, os pássaros no céu, o céu, os insetos, eu — tudo está “colado” e no lugar certo. Se eu fosse religioso, chamaria a isso de “a presença de Deus”. Mas prefiro não dar nomes, não tentar resumir em palavras e não tentar racionalizar algo tão grande. Mesmo porque a característica dessa energia não é humana e, portanto, não pensa, não enxerga, não fala, não ouve, não julga, não condena e não controla nada. Apenas existe.
A obtusidade e a intransigência de Victor forneceram vasto material para boas conversas sobre filosofia entre Ricardo e eu. A experiência enriqueceu nossa viagem com conteúdo abstrato de alta qualidade. Pudemos falar livremente do que acreditamos ser o verdadeiro potencial humano, a responsabilidade dos líderes políticos e religiosos do mundo, nossas obrigações individuais, o privilégio de estar onde estávamos fazendo o que fazíamos e de como isso poderia influenciar nossas vidas. Meu companheiro de pedal ganhou cada vez mais minha admiração por seu olhar terno e atento, seu humanismo e interesse pelo conhecimento. Não é fácil encontrar companhia para grandes pedaladas, mas é mais difícil ainda encontrar boas companhias.
Quando chegamos a Puerto Río Tranquilo, depois de quatro dias de viagem e 222 km pedalados, decidimos parar e descansar. Um dia fora da bike ajudaria a restaurar nossas forças. Na sequência viriam quase 200 km de terreno desconhecido no Valle Exploradores, assunto para o próximo capítulo.
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Até breve!
Guilherme Cavallari e a KALAPALO EDITORA contam com o apoio das marcas:
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