O VERDADEIRO INDIANA JONES, escrito por Hermes Leal, é um dos piores livros que já li.
A história do coronel inglês Percy Harrison Fawcett, desaparecido na floresta amazônica em 1925, onde hoje é o Parque Indígena do Xingu, merecia tratamento mais profissional. Se a obra fosse apenas mal escrita e mal revisada – como de fato é – já seria ruim o suficiente, mas o autor vai além e mistura opinião pessoal, conjecturas e preconceitos com fatos históricos, resultando num bom exemplo de amadorismo e superficialidade.
Para começar, a obra é auto-intitulada “uma biografia” e destaca na contracapa que o livro é “baseado em quase cinco anos de pesquisas na Europa, Ásia e América” e que “finalmente a história [do desaparecimento de Fawcett] é desvendada”. Galhofas! Para ser uma biografia minimamente competente o livro deveria tratar da vida inteira de Fawcett e não apenas dos poucos anos que ele passou na América do Sul como cartógrafo e explorador. Poucas linhas dão conta de toda sua infância e juventude e uma única linha indica que Fawcett lutou por quatro anos na Primeira Guerra Mundial, descartam um episódio decisivo na vida do protagonista. Mas, acima de tudo, o livro não acrescenta absolutamente nada de realmente relevante em relação ao desaparecimento de Fawcett no Brasil. Na verdade seu sumiço tem muito pouco de “misterioso”. O coronel inglês entrou na floresta amazônica e não saiu mais, como acontece até hoje com diversas pessoas.
Já a escolha do título – O VERDADEIRO INDIANA JONES – foi um golpe de mestre! Existe mesmo o mito de que Fawcett tenha servido de inspiração para a criação do popular personagem hollywoodiano vivido nas telas pelo galã Harrison Ford, embora as semelhanças entre o personagem histórico e o fictício sejam menos que remotas. Isso, aliás, seria uma boa informação que o livro poderia ter esclarecido: Fawcett foi mesmo usado como modelo para a construção de Indiana Jones? Permanece a dúvida. Por ser pop, Indiana Jones atraiu o interesse público e, acredito, oferece a única explicação plausível para o aparente sucesso do título, publicado em 1996 e em sua quarta edição em 2007.
LINGUAGEM E ERROS DE PORTUGUÊS
Logo no começo da leitura fiquei impressionado com o estilo amador, quase juvenil do texto. A primeira impressão que tive – e que perdurou, para minha infelicidade, até a última página – foi que o livro havia sido escrito por algum estudante pré-universitário ou recém-formado em jornalismo, disposto a soar mais erudito do que realmente era. Reli então a “nota sobre o autor” para confirmar o que parecia inverossímil e tive certeza dos fatos: o escritor da obra era “mestre de cinema pela ECA/USP” e “criador e editor da Revista de Cinema, uma das revistas de cultura mais importantes do país”, que eu, diga-se de passagem, nunca tinha ouvido falar.
O autor – ou o revisor, porque às vezes revisores conseguem destruir textos – simplesmente não domina a língua portuguesa. Gramática e estilo parecem cavalos desembestados nas páginas do livro causando desordem e destruição. O uso excessivo do pretérito imperfeito em vez do pretérito perfeito (“eu brincava” no lugar de “eu brinquei”), comum em redações juvenis, persegue o texto como uma assombração. Eu pelo menos fiquei inúmeras vezes de cabelo em pé! Não bastasse essa barbaridade, quem assina o texto – ou, novamente, o revisor – não tem ideia de como usar corretamente os pronomes reflexivos! A todo instante os sujeitos das ações verbais saem de cena para aparecer o tal “sujeito indefinido” (“sabia-se” no lugar de “nós sabíamos” ou simplesmente “sabíamos”, “se conversava” em vez de “conversávamos”, “a jornada estava apenas se iniciando” (que nesses dois últimos exemplos indicam erros gramaticais, e assim por diante) enchendo novamente a narrativa de “sombras” e “fantasmas”.
Mas os deslizes nessas “chatices” da nossa língua não são o pior que o livro tem a oferecer. Antes fossem! Doloroso mesmo é a falta de sentido e coerência!
FALTA DE SENTIDO E COERÊNCIA
Para ilustrar esse quesito selecionei apenas algumas pérolas do livro:
“Fawcett conheceu um arqueólogo e caçador de tesouros alemão”, diz o texto na página 31, “… O inglês…” continua a narrativa mudando a nacionalidade do personagem.
“… havia seis soldados embriagados, jogados naquele fim de mundo somente com suas espadas, um pouco de sal e um penico. O comandante havia sido baleado pelos soldados e desaparecera”, está na página 47 e eu me perguntei: Baleado com o quê se eles só tinham espadas? Será que o penico cuspia balas?
“Na maioria delas [lagos transparentes e erro de concordância de gênero], dava para ver cardumes inteiros de peixes em grandes poços subterrâneos, como se fossem gerados ali mesmo, na própria água, porque não se sabia de onde vinham”, li na página 54 e fiquei me perguntando: Onde afinal o autor esperava que peixes fossem gerados se não na água? Nas árvores? Seriam por acaso peixes-fruta?
“Nos primeiros dias de viagem, Oliveira sofreu um acidente e caiu no rio, apanhando malária” e precisei ler três vezes a sentença, na página 60, para ter certeza. O autor realmente havia escrito que o tal Oliveira pegara malária porque caíra no rio! E calculei que devia algum tipo raro de malária hidrotransmissível…
“Muribeca teve um filho chamado Robério Dias, que, por volta de 1600, resolveu pedir um título de marquês ao rei de Portugal, D. Pedro II…” está na página 73 e fui tirar a dúvida na Wikipedia: Existiu de fato um D. Pedro II de Portugal que reinou sobre os lusitanos de 1648 a 1706, mas em 1600 o rei era D. Felipe II, que reinou de 1578 a 1621. Mas como existiu o famoso (para nós brasileiros) D. Pedro II, soberano do Império do Brasil e filho de D. Pedro I (aquele do “eu fico”), o erro saltou imediatamente à vista.
Na página 81 está lá: “A psicometria estuda e interpreta o poder energético que todo objeto possui. Pessoas com sensibilidade são capazes de descobrir até mesmo os segredos contidos numa pedra”, e o texto continua em outra direção. Para tudo! Corri novamente à Wikipedia porque a frase, solta desse jeito, era afirmativa e não oferecia maiores explicações… Psicometria é uma suposta faculdade extrassensorial, confirmei, uma suposição mística originária da “febre mediúnica” que a humanidade sofreu do século XIX até o começo do século XX – algo parecido hoje com o exorcismo do glúten ou as igrejas evangélicas do “Jesus surdo”, que só ouve o que for gritado a plenos pulmões, dos dias de hoje. Numa publicação minimamente séria, o tema da mediunidade no contexto histórico da obra – que por sinal é de suma importância, já que Fawcett foi vítima fatal da epidemia – seria abordado e explicado.
UM POUCO MAIS DO MESMO (ISSO ESTÁ FICANDO DIVERTIDO)…
Truncada, desconexa, mal redigida e mal revisada, a narrativa segue adiante trocando nomes de rios e vilas ao longo do trajeto do coronel Fawcett e deixando o leitor para trás. A descrição do tempo é quase impossível de acompanhar, ora com uso de dias da semana e ora com uso de dias do mês, sem a menor preocupação com sequência e lógica. E para completar a confusão, Hermes Leal joga aqui e ali frases completamente sem sentido, que caem como paralelepípedos em ensaio de orquestra sinfônica…
“Budista, Fawcett era também um místico e gostava de conhecer outras religiões e culturas.” Opa! Como é que é? Reli a frase e não restava dúvida, na opinião equivocada do autor, por ser budista Fawcett era místico. E vale a correção: o budismo nada tem de místico e budistas podem (e devem) se sentir ofendidos com tal afirmação ignorante e preconceituosa. A título de didatismo, o melhor seria dizer: Apesar de ser budista, Fawcett era místico… (Pág. 116)
“O índio brasileiro tinha o misticismo apenas nos elementos da natureza, no sol e na lua”, e se eu fosse antropólogo teria um enfarto! Como uma frase tão curta consegue ser tão equivocada? Primeiro, definir como “misticismo” as crenças sutis de um povo é, novamente, preconceito e ignorância; segundo, o caráter animista da “religiosidade” do índio brasileiro é apenas um dos aspectos de seu complexo código de ética e valores; terceiro, da última vez que olhei para o céu, sol e lua ainda faziam parte da natureza. (Pág. 124)
“Fawcett, como na época da outra viagem a São Paulo, visitou o Instituto Butantã. Da primeira vez, ficara bastante impressionado com as avançadas técnicas de produção de soro antiofídico […]. Jack e Rimell [seus acompanhantes então], por outro lado, tiveram uma sensação diferente: a mesma de Fawcett quando estivera ali anteriormente.” Como assim? Tiveram uma sensação diferente e a mesma? (Pág. 139)
“Enquanto o barco subia [o rio], com seu vinco de fumaça saindo de uma grossa chaminé, encobrindo o rio de neblina”, e até onde eu sei, neblina é vapor d’água e não fumaça. (Pág. 145)
“Jack se encarregou de passar as roupas molhadas pela chuva”, e eu me perguntei: Passar a ferro? No meio da mata? Lembrando que não havia menção alguma de ferro de passar roupas no texto até então. (Pág. 146)
“A caravana com 12 animais partiu de Cuiabá […]. Os [três] ingleses e os dois guias estavam montados em cavalos, e as cinco mulas carregavam as bagagens.” E fiz as contas: 3 + 2 + 5 = 10. Dois animais sumiram em apenas uma linha de texto! (Pág. 155)
“O coronel transpirava muito, lembrando aos companheiros o sofrimento para chegar à cabeceira do Rio Verde…” Mas lembrar o que se os companheiros nunca tinham estado lá antes? (Pág. 156)
“Fawcett percebeu que precisava ficar mais uns dias na fazenda, até sarar completamente o seu auxiliar”. E o certo seria: até que seu auxiliar sarasse, já que Fawcett não era médico, mágico ou santo e não cuidava diretamente da recuperação do assistente. (Pág. 162)
“Duas invenções juntas; índios antropófagos e anões, ou seja, pigmeus brancos”. Como assim? Desde quando a conjunção de “índios antropófagos” e “anões” resulta em “pigmeus brancos”? (Pág. 169)
“A bebida foi servida logo depois de preparada, e a sua infusão se deu depois de ingerida pelo jornalista”, lembrando que infusão é o processo de preparo de bebidas como chá e café e de parecido com ingestão, que talvez o texto quisesse dizer, só tem o “ão”. (Pág. 182)
“…as barracas expostas ao longo da praia, fogareiro no centro, dois peixes pintados e uma corvina…” E fiquei curioso para saber: De que cor os peixes estavam pintados? (Pág. 224)
“O Esplanada [hotel em Cuiabá, MT] era uma espelunca cheia de garimpeiros e nordestinos.” E aqui eu quase engasguei com a frase preconceituosa e racista! (Pág. 147)
E assim por diante…
MAS O PIOR AINDA ESTAVA POR VIR…
Embora o excesso de erros faça o texto parecer cômico, O VERDADEIRO INDIANA JONES deixou de ser divertido quando o autor mostrou de fato sua personalidade nos capítulos finais. A partir da página 218 e seguindo, sem trégua, até o final do livro, na página 252, a obra é tomada de assalto por uma tempestade impiedosa de preconceito, ignorância e arrogância. Tudo acompanhado, é claro, de mais hemorragia na língua portuguesa e mais hematomas no pensamento lógico.
Acontece que, depois de terminada a narrativa da estadia e sumiço do coronel Fawcett em terras brasileiras – com passagens interessantes sobre o conflito entre o inglês e o futuro marechal Rondon – o livro chega ao seu glorioso desfecho.
O autor, Hermes Leal, e um grupo de 15 turistas que acompanhavam um cientista da USP, decidem fazer uma “expedição” para estudar in loco a história de Percy H. Fawcett no Xingu . Todos confortavelmente acomodados em 7 veículos 4×4 superequipados. A maioria das pessoas no grupo, segundo o próprio autor, “desconhecia a natureza dos índios” (Pág. 231) e “era aficionada por ralis e estava mais interessada em encontrar boas trilhas para rodar do que descobrir alguma coisa sobre Fawcett” (Pág. 220). O resultado foi que todos acabaram se envolvendo numa enrascada.
Com objetivos “não comerciais”, diz o autor – esquecendo-se de mencionar no pacote a produção do livro O VERDADEIRO INDIANA JONES, bastante comercial –, os aventureiros de final de semana (que inclui um menino de 15 anos de idade, equipe de filmagem e outros jornalistas) decidem entrar no Parque Indígena do Xingu sem autorização da FUNAI ou dos índios. Eles pedem a autorização em Brasília, mas a burocracia é lenta demais para esses excursionistas com data marcada para voltar aos seus afazeres urbanos. Paralelamente, os caciques das diversas etnias xinguanas – e líderes soberanos da reserva – se reúnem em conselho numa aldeia para debater e decidir se permitiriam ou não a entradas desses visitantes em suas terras e a conclusão é negativa. Os turistas não obtiveram autorização dos chefes índios para entrar no parque. E a solução encontrada foi o famoso “jeitinho brasileiro” aplicado em união à nefasta “lei de Gerson” (o meio-campista considerado o cérebro da seleção brasileira de futebol campeã em 1970, fumante inveterado, que foi garoto-propaganda na TV para a marca de cigarros Vila Rica, em que dizia: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também!”).
O grupo tenta então “comprar o ingresso” no parque com miçangas, mas segundo o próprio autor: “Quando René mostrou os sacos de miçangas como pagamento para entrar no parque, os índios riram. […] Há muito anos que os índios compram suas próprias miçangas e estão mais interessados em dinheiro vivo, carros, barcos e até tratores.” (Pág. 218) E fique pensando com meus botões se Hermes Leal aceitaria miçangas como pagamento por seu livro…
Com a ajuda de um índio, indicado pelo sertanista Orlando Villas-Bôas em São Paulo na maior inocência, os trilheiros em férias conseguiram negociar com um cacique a visita a uma tribo dentro da área restrita, burlando assim a não-autorização da comunidade indígena. Acontece que índio não comunga com o homem-branco a noção de propriedade – e aqui começa a infinita surpresa do autor, incapaz de aceitar que índios tenham outro código de ética e outros valores morais. “O Parque Indígena do Xingu pertence a todos os índios e, ao mesmo tempo, a índio nenhum” – eu ouvi da boca do próprio Orlando Villas-Bôas, muitos anos atrás. Uma dúzia de homens-brancos lotando duas lanchas no Rio Xingu, em direção a uma aldeia indígena e ignorando as demais, foi uma afronta imperdoável aos olhos dos proprietários legais da terra.
Mas aqui acho importante fazer uma pausa.
PAUSA PARA REFLEXÕES
Os índios já foram donos do Brasil. Aliás, já foram donos do mundo! Todos nós já fomos índios um dia, se retrocedermos em nossa longa linha de antepassados. Hoje os índios detêm uma minúscula fração do que um dia lhes pertenceu e, acreditem ou não, o Brasil é exemplo mundial na questão indígena – com todas suas imperfeições e desajustes – porque conseguiu, bem ou mal, preservar momentaneamente a cultura indígena em seu habitat local. Um patrimônio cultural que se deve, em muito, ao trabalho dos incansáveis irmãos Villas-Bôas.
Hermes Leal mostra-se tão inconformado com a diferença de atitude dos índios, tão revoltado com sua liberdade de ação no Parque Indígena do Xingu e arredores, que a palavra “punição” aparece no texto com destaque. Fica claro que, segundo o autor de O VERDADEIRO INDIANA JONES, falta punição aos índios. Falta controle. Falta maior intervenção do cara-pálida autoritário. Enquanto que, todo o tempo em que li essa parte final do texto, lembrei de uma entrevista com o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, publicada na revista portuguesa de cultura Ípsilon em maio de 2015: “A gente precisa ser mais índio”, disse Salgado referindo-se à atual falta de harmonia com a terra. E ele sabe o que diz.
Sem entrar nos méritos e deméritos da nossa política indianista nacional – não tenho competência para tanto e o autor de O VERDADEIRO INDIANA JONES também não, embora ele muito provavelmente não saiba disso –, a verdade é que o índio, se visto como “homem-branco ou quase-branco de segunda categoria”, como “selvagem” no sentido antagônico e depreciativo de “civilizado”, deixa de ser índio e vira apenas mais um indigente na nossa sociedade de seres humanos descartáveis.
E aí reside o grave erro conceitual que Hermes Leal comete nesse livro.
O RESUMO DA ÓPERA
O resumo da ópera é que os índios sequestram o grupo de brancos invasores a mão armada e exigem todos os bens materiais (roupas, calçados, relógios, lanchas, veículos, etc.) como forma de pagamento pelo crime de invasão. Os fatos, oferecidos pelo próprio livro, são: 1) houve de fato a invasão das terras indígenas, já que a solução do “jeitinho brasileiro” de entrar em área restrita de forma “alternativa” foi um tiro que saiu pela culatra; 2) o Parque Indígena do Xingu não é uma área sob o regime paternalista da FUNAI ou de qualquer outra instância administrativa ou jurídica do homem-branco, como faz supor o mal-informado texto do livro, é terra indígena para a preservação da cultura indígena que, diga-se de passagem, não está em julgamento; 3) quem pretende entrar em terra indígena – ou em território de outro país, por exemplo – tem a obrigação de conhecer antecipadamente seus direitos e deveres “fora de casa” e respeitar as leis locais. Ponto final.
O livro passa então a discorrer longa e cansativamente sobre a negociação entre homens-brancos e índios para resolver o impasse. Sempre de forma unilateral e preconceituosa. Obviamente não existe entendimento entre as partes e nem era de se esperar que existisse. Em mais de 500 anos de história do Brasil nunca houve entendimento entre essas duas culturas em choque e isso não poderia acontecer, de repente, naquele instante e com aqueles interlocutores. O impasse é superficialmente resolvido com a promessa dos homens-brancos de pagar o valor de uma picape usada aos índios a título de multa pela invasão. Os índios, ou pelo menos alguns deles, decidem aceitar o valor da multa como justo. Mas, como diz um indiozinho no texto, “índio só respeita cacique quando quer”. E eu completo: Ainda bem! Se fosse diferente eles já não seriam índios!
Segundo o livro, um carro – “que valia 40 mil dólares” (Pág. 243), um Land Rover Defender 110 todo equipado – foi retirado da fazenda onde estava estacionado, fora da reserva, pelos índios. Ainda segundo o livro, outros carros foram danificados num suposto “ritual de bruxaria”. Uma lista infinita de objetos foi subtraída pelos indígenas e Hermes Leal sentencia: “índios, do Xingu ou de outra região, sempre agem dessa forma, procurando uma maneira de saquear as pessoas que entram em suas terras”. (Pág. 231) Mas falha em dar exemplos e provas de tal acusação. Nenhuma surpresa.
E o texto passa a jorrar ofensas, preconceito, racismo, ignorância e arrogância motivados pelo sacrilégio último de ver bens materiais pessoais ameaçados. Nada parece mais sagrado que o patrimônio pessoal. E Hermes Leal, com seu característico desrespeito à língua portuguesa e absoluta carência de estilo e graça, discorre infinitos e repetitivos impropérios:
“O índio aculturado [o cacique Aritana], que vivia nos gabinetes de Brasília e do Rio de Janeiro, buscando ajuda para a sua ONG, agora vestia-se [o correto seria: se vestia] de selvagem para sequestrar e saquear em nome de uma causa que ele próprio manchava”. (Pág. 234)
“Ele [o piloto do avião] já assistira a essas mesmas cenas inúmeras vezes. As pessoas entram [na reserva indígena], mesmo autorizadas [o que não era o caso desse grupo], e depois são depenadas”. Mais uma afirmação solta no texto sem nenhuma comprovação posterior, no bom estilo do jornalismo marrom. (Pág. 235)
“O pequeno saqueador [o índio que havia dito que “índio só respeita cacique quando quer”] seria um chefe, e estava demonstrando que conseguia algo de útil [objetos] para o seu povo, mesmo que fosse roubado. Mavutsinim [entidade sagrada entre os índios xinguanos, algo próximo do Deus-criador do homem-branco], se existisse de verdade, morreria de vergonha ao ver seu nome e seus filhos transformados em quadrilhas para obter na marra o que não conseguiam com suas ONGs ou com o governo.” (Pág. 237). Ao que eu me pergunto: se um índio escrevesse algo semelhante, “se Jesus Cristo tivesse existido de verdade”, blá, blá, blá… Qual seria a reação geral dos crentes, dos religiosos ou simplesmente dos respeitadores da fé alheia?
E tem mais, muito mais…
“Todo mundo sabe que índios, em qualquer parte do Brasil, nunca tiveram respeito por brancos, e podem fazer o que bem entendem que também não serão punidos.” (Pág. 238)
“Entre as atrocidades praticadas por índios da região existem casos de saques a fazendas e estupros. Histórias desse tipo eram o que mais se ouvia”. E novamente nada de provas (Pág. 246)
E a voz estridente e raivosa, gritando por “meus direitos” e incapaz de enxergar os direitos alheios ou os próprios deveres, parece não ter fim…
CONCLUSÕES PESSOAIS
Como sempre faço nas resenhas de livros que escrevo – nada diferente aqui – digo se gosto ou não gosto de um texto, se indico ou não um livro. O VERDADEIRO INDIANA JONES, do jornalista, cinegrafista, roteirista e atualmente professor universitário de semiótica Hermes Leal, é um dos piores livros que já li.
Explico por que:
1) O texto é ruim, muito ruim. O livro é caracterizado por erros de português, falhas de pontuação, ausência de estilo e graça, parágrafos que não se conectam, informações jogadas a esmo e absoluta falta de informação quando temas importantes são inseridos na narrativa. Em resumo, o livro é juvenil e superficial.
2) A edição é pobre. Talvez muitos dos erros de português pudessem ter sido evitados com uma revisão profissional (se meu nome estivesse na lista de revisores eu compraria a tiragem toda da obra para queimar ou mudaria de nome!), mas isso não aconteceu. Faltam mapas para situar o leitor. A obra não foi preparada por um bom editor e deu no que deu: papel jogado fora.
3) O produto final é preconceituoso, racista, desinformativo e equivocado. Percy H. Fawcett não é um herói, como Hermes Leal faz crer. Ele não está nem perto do patamar de exploradores como Richard Francis Burton, David Livingstone e Henry Stanley, como o livro faz supor. O envolvimento de Fawcett com o movimento místico e sua crença na mediunidade como ciência comprometeram sua credibilidade e seu trabalho de explorador junto à Royal Geographical Society. A justificativa para a fama póstuma de Fawcett está em seu desaparecimento e não em suas conquistas como explorador.
O coronel inglês divulgava pelo mundo que enfrentaria no Brasil “canibais selvagens” e que atravessaria “regiões nunca antes visitadas pelo homem civilizado”, tudo para encontrar “resquícios de uma civilização perdida”. Por outro lado, o marechal Rondon contra-argumentava que não havia canibais no Xingu e que o inglês se dirigia a lugares já mapeados e inclusive com telégrafo disponível em alguns pontos. Os índios que, muito provavelmente mataram Fawcett pelo desrespeito que sua presença impunha, já haviam sido contatados pelo homem-branco anteriormente.
Mas a história de Fawcett, nas mãos de um estudioso sério e um escritor minimamente competente, tem muito a oferecer. A visita de um explorador inglês de algum renome, mesmo que influenciado por crendices místicas e suposições ilógicas, a uma das poucas regiões do mundo onde exemplares do homem pré-histórico ainda circulavam livres, tem imenso potencial. Fawcett, enquanto representante da cultura europeia expansionista da época, diante do aborígene livre de influências externas então presente no Xingu, cria um cenário de infinitas possibilidades. Mas isso, lastimavelmente, não está no livro.
AI, QUE MEDO!
Mas O VERDADEIRO INDIANA JONES me deixou assustado!
Que as livrarias brasileiras estão lotadas de livro ruins, todo mundo sabe. O VERDADEIRO INDIANA JONES não é exceção. O problema maior, no entanto, está nos créditos da obra…
A Geração Editorial, que lançou o título, é um selo da Ediouro, uma das maiores editoras de livros do país e talvez a maior em número de títulos. Alguns dos selos do grupo são a Editora Agir e a Editora Nova Fronteira, duas potências. Hermes Leal não é um estudante pré-universitário ou recém-formado, como a qualidade de seu texto leva a crer. O autor é professor universitário e foi executivo de grandes veículos de comunicação! As resenhas que li na internet sobre o livro, assinados por jornalistas e veículos de algum respeito, são todas positivas e todas iguais, obviamente copiadas de um release de imprensa. O que me leva a crer que: 1) ou ninguém lê livros antes de escrever resenhas (o que de fato acontece cotidianamente), ou pior ainda: 2) jornalistas leem, mas não entendem o que leem, provavelmente porque precisam ler muito e ler rápido (o que também não é surpresa, já que nosso sistema educacional faliu há décadas e o Brasil, segundo pesquisa internacional, está no fim da fila entre os países avaliados em compreensão de textos).
E, apesar da inegável falta de qualidade, O VERDADEIRO INDIANA JONES está em sua quarta edição e, além de manter intactos os erros da primeira edição, ainda está em destaque em algumas livrarias, mesmo dez anos depois de seu lançamento. Em suma, um exemplo assustador de mediocridade institucionalizada e consagrada.
Quem quiser ler um bom livro sobre a vida e as aventuras de Fawcett, leia o livro escrito pelo próprio coronel Fawcett: LOST TRAILS, LOST CITIES (link para resenha), de onde 99% das informações contidas em O VERDADEIRO INDIANA JONES foram retiradas.
O VERDADEIRO INDIANA JONES
Hermes Leal
1996
Geração Editorial
290 páginas
ISBN 9788560302178
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