CAPITÃO FANTÁSTICO

11 de janeiro de 2017

 

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Quando terminei de assistir ao filme Capitão Fantástico, do diretor norte-americano Matt Ross, fiz questão de esperar até a última linha do letreiro e até as luzes do cinema se acenderem. Eu não queria perder um segundo do filme. Mas, pra ser sincero, eu precisava também dar um tempo até que minhas lágrimas e soluços parassem pra poder sair. Fazia muito tempo que eu não me emocionava tanto com um filme.

Vou tomar cuidado aqui para não estragar a experiência de ninguém contando mais do que deveria sobre o filme — o tal do spoiler. Então vamos lá… O ator Viggo Mortensen, famoso pelo papel de Aragorn na trilogia O Senhor dos Anéis, é o pai de seis crianças entre 6 e 18 anos, aproximadamente, que vivem isolados da sociedade e da modernidade num rancho incrustrado numa floresta no noroeste dos Estados Unidos. Depois de uma tragédia familiar, a família se vê obrigada a enfrentar “o mundo lá fora” e termina também por enfrentar seu “mundo interior”.

Ben Cash — nome do personagem interpretado por Viggo Mortensen — vive exclusivamente para educar seus filhos como “reis-filósofos”, numa referência direta à escola grega de filosofia representada por Platão. A saber, uma educação baseada no diálogo, composta de atividades artísticas, grande desenvoltura física, política e ética, tudo moldado numa forte disciplina militar. Uma proposta que pode soar anacrônica, mas que ainda faz parte do imaginário estadunidense.

Durante anos, Cash e a esposa guiaram pessoalmente as crianças a produzir alimentos, caçar animais silvestres, confeccionar roupas, navegar pelas estrelas, escalar em rocha, falar línguas estrangeiras, dominar artes marciais, praticar yoga, fazer música, meditar, ler e analisar criticamente os livros lidos e, de forma geral, a pensar pelas próprias cabeças. E isso de “pensar pela própria cabeça” é cada vez mais revolucionário conforme a sociedade global se normatiza. A globalização, em última estância, padroniza o mundo. Quem pensa fora da caixinha termina por viver também fora da caixinha.

No começo do filme — bem no começo apenas — temos a impressão de tratar-se apenas da história de mais uma família hippie desajustada, engraçada e esdrúxula, mas tão soterrada em preconceitos e miopias quanto qualquer outra mais convencional. Uma constatação que dura pouco. Passados os primeiros quinze minutos de projeção, sutilezas começarem a vir à tona e ficarmos surpresos com a profundidade e a complexidade dos personagens, mesmo os mais jovens. A autoridade do pai, embora inegável, não é inquestionável ou soberana. Filhos que aprender cedo a pensar por conta própria, demoram pouco a questionar e contestar qualquer tipo de autoridade. Em vários momentos nos perguntamos da plateia: “Será que uma criança de sete ou oito anos consegue enxergam tanto assim da vida?”“Será que ela consegue encarar e assimilar com tanta visão o peso do mundo ao seu redor?”… E a riqueza dos personagens nos confirma que “Sim!” e imediatamente somos relembrados de nossa própria infância, das nossas dúvidas e contestações então, das nossas descobertas e suas consequências. A constatação desse potencial quase desproporcional é, na verdade, o cerne do filme. O potencial de toda criança e, consequentemente, de cada adulto. Nosso potencial individual.

Educar é cultivar, nos ensina o filme. E essa analogia fica ainda mais evidente quando crianças são educadas ao ar livre, em contato com a natureza. É inegável que o pai e protagonista do filme, Ben Cash, exige muito dos filhos. Talvez até demais. Mas isso faz todo o sentido ao vermos a dimensão de sua dedicação. Na floresta onde vivem, Ben não tem outros papéis a desempenhar além daquele de ser pai e educador. Nessa dinâmica familiar, a primeira coisa que desaparece do cenário é o tempo ocioso, o tempo perdido. Todos na família têm muito trabalho a fazer para que o núcleo humano consiga sobreviver e viver em plenitude. As crianças, quando brincam, exploram, descobrem e aprendem. Ninguém “desliga a cabeça” afastando-se da realidade no labirinto do “entretenimento”, tão comum nos centros urbanos. Esse foi, para mim, o grande choque de realidade proporcionado pela narrativa do filme. Simples, mas contundente. “Quanta coisa somos capazes de realizar”, eu repeti para mim mesmo várias vezes durante o filme, “se simplesmente nos mantivermos atentos à realidade”.

Mas Capitão Fantástico também é um filme de viagem, um road movie — como se diz em inglês — porque a família parte da floresta em direção à cidade e se defronta com os inevitáveis conflitos pessoais e interpessoais que toda boa viagem promove. A própria filosofia de vida que guiou até então a vida dos personagens é confrontada e questionada, fazendo do filme um exemplo vivo de diálogo, democracia e tolerância. Essa falta de rigidez, de arrogância, é o que eleva a no final a produção ao patamar de arte. Platão ficaria honrado.

Capitão Fantástico é um filme contemporâneo. Eu diria até que é um filme de vanguarda. Nos Estados Unidos, cultura e contracultura sempre travaram debates e até combates. A eleição de Donald Trump pode ser vista como uma resposta truculenta ao avanço liberal representado pelo Estado da Califórnia, onde a maconha foi legalizada para produção e consumo, o aborto é legal, o casamento gay é permitiro e leis ambientais restringem cada vez mais os abusos do capitalismo de consumo. No Brasil, depois dos escândalos de corrupção do governo Lula, a resposta da sociedade veio com o impeachment da presidente Dilma por tecnicalidades e um movimento anti-PT no lugar de um movimento anticorrupção (pasmem, as duas coisas não são sinônimas). Nos dois exemplos, questões sociais foram confundidas com noções menores de administração e interesses de lucro. Criou-se uma polarização sem fundamento que faz com que a política se aproxime do futebol e, mais uma vez, o mundo parece ser preto e branco e fácil de entender. Um erro comum na história. Mas Capitão Fantástico pinta o mundo em infinitos tons de cinza.

Se eu fosse tentar definir Capitão Fantástico numa única palavra, eu diria que o filme é “corajoso”. Primeiro, por não ter pudor em expor as falhas na filosofia de vida que criou e justifica seus personagens. Segundo, por deixar claro que são nossas ações que determinam quem somos e, como disse Mahatma Gandhi, “precisamos ser as mudanças que queremos para o mundo”. Fazer panfletagem em cima de respostas prontas ou soluções mágicas é fácil. Difícil é desbravar, arriscar, se perder no caminho e seguir adiante sem se acovardar. Por isso Capitão Fantástico é também um filme de aventura. Um filme de ação onde não há heróis ou vilões e onde descobrimos a verdadeira grandeza da palavra “ação” — a transformação que pode ocorrer dentro de nós.

Nesse sentido, onde a verdadeira aventura é a aventura interior, Capitão Fantástico se aproxima muito do filme Na Natureza Selvagem, de Sean Penn. Ambos enredos apontam para o contato íntimo e harmonioso com a natureza como o caminho na busca de alternativas à falta de perspectiva, ao conformismo, ao consumismo, ao dinheirismo e à ausência real, no dia a dia, de valores profundos e humanos que possam guiar nossas vidas. Dois filmes que só poderiam ter nascido nos Estados Unidos, onde a obsessão por viver de forma autossuficiente e respeitosa na natureza selvagem é também uma discussão sobre a sobrevivência do espírito humano. Herança intelectual de “filósofos de unhas sujas” como Thoreau, Muir, Abbey e outros.

Capitão Fantástico — que considero uma continuação filosófico-narrativa de Na Natureza Selvagem — é um filme inspirador e incômodo. Saímos do cinema esbaforidos, eletrizados, inconformados e envergonhados. “O que eu estou fazendo com a minha vida?”, nos perguntamos ao final do filme. “Quanto tempo perdido! Quanta mentira!”, concluímos. E os dois filmes, cada um à sua maneira, apontam para a mesma direção geral, que teimamos em não adotar: busque o caminho da natureza o mais preservada, limpa, o mais isolada possível da influência humana.

Por que?

Porque na natureza selvagem está a nossa própria natureza, aquela centelha acesa que perdemos no cenário de concreto, vidro e aço que erguemos à nossa volta. Porque nenhum projeto de vida é mais importante do que o projeto de nossas vidas. Porque a verdadeira roupa que nos veste é a nossa própria pele.

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