HIGHLANDS DE TANDEM… COMEÇO DIFÍCIL

3 de maio de 2016
DSC05945 REDUX

Depois de uma longa subida, a primeira da viagem, um turista alemão nos ajudou a fazer essa foto de topo…

UM COMEÇO DIFÍCIL

Estamos em Avimore, a principal porta de entrada para o maior parque nacional do Reino Unido. Para chegar até aqui, Adriana e eu pedalamos 177 km em 4 dias. E acho que agora, somente agora, estamos finalmente confortáveis em nossa bike.

O projeto dessa cicloviagem de mountain bike, numa tandem (bike dupla) especialmente construída e montada para nós, é percorrer cerca de 850 km pelas Highlands da Escócia com visitas e pernoites no maior possível de bothies no caminho. Bothies são abrigos rústicos (para o padrão europeu), gratuitos, situados em locais remotos e abertos ao público.

Começamos a pedalar da cidadezinha de Pitlochry onde, para ganhar energia e entrar no clima, apresentei à Adri meu prato favorito da culinária escocesa: Cullen Skink. Essa sopa de hadoque defumado (Melanogrammus aeglefinus, um peixe parecido com o bacalhau), batatas, alho porró e creme de leite, mantém os pescadores do Atlântico Norte vivos e ativos em pleno inverno. O certo seria termos tomado a sopa com algumas doses de uísque escocês single malt (de apenas um malte, em vez de blend, onde vários maltes são misturados), mas preferimos nos manter sóbrios para o longo dia seguinte.

DSC05952 REDUX

Esse é o bothy Gelder Stables, um antigo estábulo transformado em abrigo de montanha. Nossa tandem estacionada na frente.

De Pitlochry pedalamos 67 quilômetros até um bothy chamado Callater Stable, onde fomos os únicos hóspedes. Acho que exagerei um pouco na distância do primeiro dia e exagerei com certeza na quantidade de comida que carregamos na bike. Não posso dar a desculpa de ser um cicloviajante inexperiente, mas essa é a primeira viagem de bike que faço com minha esposa. Aliás, estamos comemorando 20 anos de casamento nesse pedal. Pesei a mão no desejo de conforto.

Passamos quase dez horas na função, dormimos como defuntos a noite toda e, na manhã seguinte, Adri me deixou alarmado:

– Estou com os dois joelhos inflamados. Acho que é tendinite, talvez por eu ter condromalácia patelar. Vou tomar um anti-inflamatório e vamos ver o que acontece.

Que traduzi, em português simples: “fodeu!”

E isso depois de ela ter ido a um pronto-socorro na capital escocesa, Edinburgh, dois dias antes da gente começar a pedalar. A médica diagnosticou uma infecção vaginal leve e receitou antibióticos por cinco dias.

Pelo menos a bicicleta chegou inteira depois do vôo desde São Paulo.

DSC05977 REDUX

Nosso terceiro dia foi o “dia dos pés molhados”. Esse trecho da estradinha de terra terminava em um rio, seguido de um riacho e outro riacho… Nem sempre conseguimos cruzar ilesos…

UM DESERTO DE GENTE

Até o começo do Século XIX, as Highlands eram uma região densamente povoada. Mas os proprietários de terra, lordes e ladies na maioria, queriam ganhar mais dinheiro do que os inquilinos de pequenos lotes rurais conseguiam pagar, e começou uma intensa política de despovoamento conhecido como The Highlands Clearances – “a limpeza das Highlands”. A terra seria ocupada por incontáveis cabeças de ovelha, que produziriam carne e lã e muito dinheiro. Mais ou menos o que o Brasil faz hoje em relação ao gado bovino e à soja.

Centenas de milhares de Highlanders foram despejados, às vezes brutalmente, e deslocados para povoados à beira-mar ou imigraram em massa para a América do Norte. O número de pessoas que chegou ao Canadá, por exemplo, determinou que o extremo sudeste do país ficasse conhecido como “Nova Escócia”.

DSC05954 REDUX

Uma das vistas mais bonitas até agora da viagem. Esse é o Loch Calleter, o Lago Calleter, bem em frente ao bothy onde dormimos a primeira noite. Nossa água para consumo vinha de um riacho que desaguava no lago.

Essa é a explicação para o fenômeno de maior impacto para quem viaja pelo interior das Highlands: praticamente não se vê pessoas, construções, estradas, absolutamente nada que lembre ocupação humana! E é por isso, também, que a região é tão popular como destino de turismo de aventura. Mountain bikers, trekkers, escaladores, esquiadores, pescadores, caçadores, remadores e todo tipo de amante da natureza são atraídos para o norte da Escócia como agulha de uma bússola.

Foi isso o que me atraiu para cá em outubro do ano passado, quando fiz sozinho o roteiro de trekking CAPE WRATH TRAIL, considerado “o mais difícil da Grã-Bretanha”. Terminei a caminhada no farol de Cape Wrath, no extremos noroeste da Escócia, com uma certeza: eu voltaria às Highlands e isso não demoraria muito.

DORMIMOS COMO REIS

DSC05951 REDUX

Todo bothy mantido pela MBA (Mountain Bothies Association) tem esse selo na porta. É só abrir a porta e se acomodar…

Nosso segundo dia de pedal nos levou até a propriedade da Rainha da Inglaterra na Escócia, o Castelo de Balmoral. Num ponto isolado da grande área privada existe um pequeno aglomerado de árvores, pinheiros e cedros na maioria, com uma casinha construída com pedras, como é típico na região. Esse é o Gelder Shiel Bothy, que pertence ao monarca britânico. A porta está sempre destrancada, como acontece em todo bothy. Dentro não existe luz elétrica, água encanada, sistema de aquecimento ou móveis. Nesse bothy, em particular, existe o luxo indescritível de uma torneira do lado de fora e de uma latrina aberta no chão, além de cinco beliches sem colchão, uma mesa e algumas cadeiras. Coisa de reis e rainhas…

DSC05971 REDUX

Tivemos que empurrar a tandem por toda a extensão desse lago, por uma trilha estreita (singletrack) impossível para nossa bike dupla.

Todo bothy tem dono e muitos são administrados por uma associação sem fins lucrativos que, através de doações e de mão de obra voluntária, reforma e mantém as casas em bom estado. Os mutirões de trabalho que atuam nesses lugares ermos às vezes reúne dezenas de pessoas por vários dias consecutivos, numa verdadeira “operação de guerra”. Às vezes helicópteros do Exército Britânico são usados para transportar material e equipamento. Uma parte do dinheiro doado vem dos próprios donos da casa, que normalmente se encontrava em péssimo estado antes de virar bothy.

No caminho para esse abrigo, quando pedalávamos por uma estrada de terra pouco usada, um atalho que descobri num mapa local, apareceram três carros vindo na direção oposta: dois Range Rovers pretos e um Bentley, também preto, o 4×4 mais caro e luxuoso do mundo. Com certeza algum membro da família real inglesa estava a bordo.

Tivemos a companhia de cinco jovens ingleses, que chegaram no fim do dia. Para muita gente, visitar bothies é uma das mais importantes atividades de lazer.

DSC05964 REDUX

Guilherme Cavallari e Adriana Braga na entrada do Castelo Braemar. Nós acreditávamos que a construção ao fundo era o castelo, mas era apenas a portaria!!! hehehe

PLANOS FORAM FEITOS PARA SEREM MUDADOS

O susto dos joelhos inflamados da Adri me ensinou uma lição óbvia: sem flexibilidade não existe viagem. Pedalamos o terceiro dia até uma vila chamada Toumintoul, onde passamoa a noite em um Bed and Breakfast (um tipo de pousada que serve apenas café da manhã) de um casal de sul-africanos. A ideia inicial era esticar 82 quilômetros e chegar a Avimore um dia antes.

Mas essa parada não programada não foi a única mudança nos planos. Também redesenhei o percurso da viagem. Vamos pedalar por mais asfalto e estradas de terra. Vamos evitar os singletracks (trilhas estreitas) e trechos sem trilha alguma. Empurrar uma tandem é muito duro e cansativo. Pensei o seguinte: “Se estamos aqui para comemorar 20 anos juntos, preciso desenhar essa viagem para agradar também a Adri”.

DSC05984 REDUX

As montanhas do Parque Nacional Cairngorms no fim da nossa longa estrada. Avimore, onde passamos a quarta noite da viagem, é uma das mais importantes portas de entrada para o parque.

De qualquer maneira, estamos um dia adiantadas em nosso cronograma inicial, descarregamos cerca de 4 kg de comida extra no bothy da rainha, transferi peso dos alforjes da bike para minha mochila e estou concentrado em ser muito gentil e carinhoso com minha esposa.

Para quem, como eu, trabalha naquilo que lhe dá mais prazer e vive daquilo que um dia já foi seu hobby, é muito fácil confundir trabalho com lazer e, pior, lazer com trabalho. Tenho uma certa tendência de colocar muita energia, pressão, estresse e expectativas naquilo que faço e, não demora muito, tudo vira obrigação e dever. Essa viagem de bike com a Adriana, nossa primeira juntos, poderá me ensinar a relaxar mais e aceitar com mais bom humor o inesperado.

Uma coisa já aprendi: pedalar uma tandem é muito parecido com cuidar de um casamento. Acho que no próximo post vou discorrer um pouco mais a fundo sobre isso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


MARCAS QUE APÓIAM NOSSOS PROJETOS: