UM DIA CHANCELER, UM DIA SEM COMER!
Oitavo dia de viagem, mais de uma semana pedalando pelas Highlands da Escócia e apenas a segunda postagem que faço no blog. Bom sinal. Se não sobra tempo para escrever é porque muita coisa está acontecendo…
Da cidade de Avimore, de onde escrevi a primeira postagem, no quarto dia da viagem, Adriana e eu pedalamos mais 165 km. Ou seja, pouco mais de 41 km por dia em média. No total já percorremos 342 km dos 850 km inicialmente previstos.
Estamos hospedados numa pousada às margens do Loch Cluanie, num quarto de casal (vamos dormir a primeira noite em cama de casal desde que chegamos na Escócia, há onze dias atrás), com uma cama extra de solteiro onde jogamos toda nossa tralha. Temos uma pia, mesinhas de cabeceira, gaveteiro com televisão, escrivaninha com chaleira elétrica, um guarda-roupas, sinal de internet, telefone, banheiro, toalhas, sabonetes, xampu, condicionar de cabelo e duas lindas poltronas de couro marrom claro. Tudo muito chique.
As três noites anteriores nós dormimos, primeiro, num bothy gelado acomodados em “prateleiras” que cumpriam o papel de beliche triplo. Uma fresta de uma janela mal bloqueada ventou a noite toda em nos ouvidos, mas não reclamamos. Dividimos o abrigo de montanha, chamado Ruigh Alteachain, com um cicloturista inglês chamado Ritchie e um montanhista escocês chamado Craig. Os dois mantiveram o velho fogão a lenha do bothy queimando na potência máxima a noite toda e encheram a casa de fumaça azulada. Nossa fresta de vento gelado também era nossa única fonte de ar puro.
A segunda noite dessa sequência, nós acampamos no jardim de uma família de imigrantes canadenses residentes há oito anos da Escócia. Estávamos no largo vale do Rio Spey, em direção à sua nascente. Num extremo tivemos o pôr do sol e, no outro extremo, assistimos ao nascer do sol num dos dias mais quentes e ensolarados até o momento.
A terceira noite, ontem, montamos nossa barraca no gramado de um camping estruturado com banheiros, chuveiros, lavanderia e sinal de WiFi na cidadezinha de Fort Augustus, na ponta sul do grande Loch Ness (aquele do monstro).
Toda vez que fico acomodado num lugar mais chique, como agora, depois de passar algumas noites “na dureza”, lembro do Rock do Segurança, a canção do Gilberto Gil, onde ele diz:
“Essa aparência de um mero vagabundo é mera coincidência. Deve-se ao fato de eu ter vindo ao seu mundo com a incumbência de andar a terra, saber por que o amor, saber por que a guerra. Olhar a cara da pessoa comum e da pessoa rara…”
E a parte que eu sempre canto, alto, geralmente dançando, quando me vejo por cima da carne seca depois de vários apertos:
“Um dia rico, um dia pobre, um no poder! Um dia chanceler, um dia sem comer!”
Hahahahaha! E estou rindo a toa porque hoje é meu dia de chanceler!
NEM TUDO É FANTASIA
De Avimore até o bothy Ruigh Alteachain tivemos um dia de mountain bike como poucos que já tive na vida! Foi uma sequência de trilhas em singletrack e double track, trilhas estreitas e trilhas mais largas, cortando bosques de pinheiros escoceses altos e grossos. A tandem não vencia todos os obstáculos e eu suava para manter a bike na linha correta, mas tudo era diversão. Até empurrar a bike era legal. Chegando no bothy descobrimos que uma enchente do Rio Feshie em dezembro havia levado a ponte em frente ao abrigo e duas partes da trilha. Em alguns trechos tivermos que carregar a tandem com toda a bagagem nos ombros.
Do bothy até o vilarejo de Laggan, onde acampamos no jardim dos canadenses, refizemos os trechos difíceis do dia anterior, pedalamos por estradas de reflorestamento, por rodovias de asfalto e por dentro de cidadezinhas pacatas. Foi um dia longo que nos deixou bem cansados.
E então veio o Corrieayairak Pass, o passo de montanha de Corrieayairack que sobe mais de 200 m verticais em menos de 2 km e é um desafio para os mountain bikers locais. Obviamente não pedalamos todo o percurso, mas boa parte dele. Em compensação, a descida do outro lado fizemos feito dois kamikazes.
De Fort Augustus para cá tivemos 12 km de trilhas por bosques e 40 km de asfalto por rodovias pouco movimentadas. Nada de muito especial, como às vezes acontece em cicloviagens. E chegando à pousada havia um motociclista acidentado no asfalto a espera do resgate de helicóptero. Ele já havia sido socorrido por amigos, motoristas e o próprio dono da pousada onde estamos hospedados. Não foi legal ver o cara estendido no asfalto.
NEM TUDO É REALIDADE
Amanhã teremos um dia longo de alta quilometragem com uma serra para vencer, mas também estamos pensando em descansar à beira-mar. Quero visitar um lugar fictício chamado Camúsfearna, situado num lugar real chamado Sandaig, onde o escritor escocês Gavin Maxwell escreveu seu best-seller Ring of Bright Water.
Maxwell criou e conviveu anos com lontras domesticadas que ele tratava como animais de estimação e grandes amigos. Escritor talentoso, nascido numa família nobre, amigo de membros da família real britânica, aventureiro consagrado com expedições na Sicília, Marrocos e nos pântanos do sul do Iraque, ele viveu uma vida cheia de experiências contraditórias. Homossexual num tempo que que a homossexualidade era crime passível de prisão na Grã-Bretanha, perdulário incontrolável, incapaz de controlar seus desejos ou entender a relação de custo-benefício de suas vontades, artista reverenciado, escravo de valores sociais, a lista de suas características marcantes é quase infinita.
Ring of Bright Water é uma importante obra da literatura de língua inglesa e foi transformado em filme por Walt Disney na década de 1950 (disponível no YouTube). Maxwell fez muito pela proteção animal, tanto com sua obra quanto com sua iniciativa de criar um santuário para as lontras. Camúsfearna é um misto de cenário ficcional e paraíso real. Eu gostaria muito de passar uma noite acampado ali.
A EXPEDIÇÃO HIGHLANDS TANDEM KALAPALO conta com o apoio das seguintes marcas:
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