2011, MOUNTAIN VOICES 118

1 de janeiro de 2011

Carretera Austral, uma estrada para a aventura

O que passa pela sua cabeça quando alguém diz: “vou pra Patagônia”?
A imagem que imediatamente me vem à cabeça é roupa molhada de suor e chuva, rosto queimado de sol, unhas encardidas, cabelos desgrenhados pelo vento, botas sujas de lama, olhos brilhantes e um sutil sorriso tatuado no rosto. Patagônia para mim é sinônimo de aventura.

Desde 2004, quando fiz pela primeira vez trekking em Torres del Paine, fui fisgado. De lá pra cá tenho visitado a Patagônia quase todos os verões, tanto na Argentina quanto no Chile. Quem acompanha meu trabalho, como autor e editor à frente da Kalapalo Editora (www.kalapalo.com.br), conhece os roteiros patagônicos que publiquei na coleção Guia de Trilhas Trekking… Torres del Paine, El Chaltén, Ilha Navarino.

No verão de 2010/2011 decidi investir em um projeto editorial de maior abrangência geográfica, mapeando toda a extensão da Carretera Austral, na Patagônia chilena. Incluí também no projeto os principais roteiros de trekking em parques e reservas nacionais ao longo do caminho. A idéia era produzir um livro multiesporte, que além do mapeamento da Carretera Austral para bikes, carros e motos, vários roteiros de trekking, também trouxesse indicações precisas de onde praticar escalada em rocha, montanhismo leve, canoagem, rafting e pesca esportiva. Meu limite de tempo para a viagem era 60 dias.
Infelizmente, por conta de tempo, eu não poderia percorrer a Carretera Austral de bike, meu transporte favorito. Fomos de carro – eu e minha mulher, Adriana Braga – levando bikes, todo o equipo de trekking, material de escalada, grampões e piolets, e até nossos remos de fibra de carbono para caiaques. Estaríamos prontos para o que pintasse!

Partimos de São Paulo e depois de uma semana estávamos em Puerto Montt, marco zero da Carretera Austral. Mesmo depois de pesquisar na Internet, ler diversos livros e guias de viagem, conversar com conhecidos e amigos, participar de fóruns on-line e até trocar correspondência com eventuais contatos locais que descobrimos, chegamos a Puerto Montt com mais dúvidas que respostas. Não sabíamos, por exemplo, exatamente que trechos da Carretera Austral ainda estavam interditados devido à erupção do Vulcão Chaitén, ocorrida em 2008; quais serviços de balsa e barcos de transporte de veículos funcionavam e quando; quais roteiros de trekking da nossa lista ainda existiam ou estavam abertos; não sabíamos exatamente onde encontraríamos combustível para abastecer o carro ao longo do percurso.

De cara, descobrimos que deveríamos ter reservado passagem no barco de transporte que conecta Puerto Montt a Chaitén. A bagaça estava lotada! Resultado: perdemos três dias nessa desinformação. Ou melhor, ganhamos três dias para pedalar em torno do Lago Llanquihue, o equivalente chileno ao Lago Nahuel Huapi na Argentino, inclusive com a “prima chilena de Bariloche”: Puerto Varas. Como diz o ditado: “no inferno, abrace o diabo!”.

No primeiro trecho do mapeamento fomos de Puerto Montt a Hornopirén, parando dois dias em Cochamó, destino conhecido entre os escaladores do mundo todo como o “Yosemite sul-americano”. Paredões de granito puro, rosado, com vias de 1.200 m verticais, quase todas em livre. Mapeei o trekking de aproximação ao fundo do vale do Rio Cochamó, onde os paredões formam um anfiteatro monumental e de tirar o fôlego. Esse trekking de 20 quilômetros, ida e volta, acompanha todo o tempo as águas turquesa e cristalinas do Rio Cochamó, com praias naturais de areias brancas exigindo um mergulho. Mas tem que ter coragem… A temperatura do rio não deve chegar aos 10°C.

No fundo do vale há um simpático refúgio, de propriedade de um casal de escaladores, Daniel e Silvina, ele norte-americano e ela argentina. Na aconchegante cabana de madeira nunca falta uma chaleira cheia de água sobre o fogão a lenha, para o mate dos anfitriões e visitantes.

Nessa região, ainda mais próximo de Puerto Montt, visitamos o Parque Nacional Alerce Andino e mapeamos um roteiro de trekking de 2 a 4 dias de duração, dependendo do ânimo de cada um. Esse parque existe para preservar gigantescas árvores de mais de 3.000 anos de idade, 60 metros de altura, 6 metros de largura, ameaçadas de extinção pela indústria madeireira. O alerce tem uma madeira maciça e quase indestrutível, muito usada na construção civil e naval. Ao longo da Carretera Austral é possível encontrar casas e igrejas centenárias feitas dessa madeira, ainda sólidas e firmes, como se fossem de concreto novo.

No parque o clima estava perfeito, sem uma nuvem no céu apesar da região ser muito úmida nessa época do ano. As trilhas, porém, estavam ainda obstruídas pelas agruras do inverno, com árvores caídas, galhos atravessados e eventuais desmoronamentos. A temporada de verão ainda não havia começado e a administração do parque não havia reorganizado os caminhos. Fizemos inclusive um relatório final ao guarda-parque no final da excursão. Mas mesmo no auge do verão os parques e reservas nacionais em torno da Carretera Austral recebem um fluxo muito pequeno de turistas, muito diferente de Torres del Paine, por exemplo. No final tínhamos o parque todo só para nós e não fizemos pouco caso disso, nadamos pelados no rio e na lagoa, passamos um dia extra só relaxando, tomando sol e ouvindo a mata.

Pode-se dizer que é só depois do navio até Chaitén que a Carretera Austral começa de verdade. Quanto mais ao sul nos deslocávamos, mais isolados nos sentíamos, menos pessoas encontrávamos na estrada, mais sentíamos a Patagônia ao nosso redor.

Mapeamos um desvio na Carretera Austral que chega até Futaleufu, uma vilazinha acolhedora e turística às margens do Rio Futaleufu, considerado um dos cinco melhores do mundo para rafting. Com a temporada de verão ainda não havia começado, o volume de água do “Futa” estava duas vezes e meia superior ao recomendável para descidas comerciais. Uma represa em território argentino regula essa vazão de água e o decorrente humor dos remadores chilenos. No camping onde estávamos acampados, um grupo de guias resolveu fazer um treino e faltava um remador no bote. Sem saber no que estava me metendo, pulei pra dentro.

Nosso capitão era um italiano com experiência no Quênia, Colorado, Suíça e Nepal. Os remadores eram todos guias profissionais. O único café com leite no bote era eu. As ondas de refluxo, redemoinhos e os paredões de água nas curvas do rio tinham o tamanho de carros e casas. Os comandos de remo eram do tipo: “tudo pra direita ou a gente morre!”, “esquerda, p*** que pariu!”, “se alguém cair na água aqui f**eu!”, e assim por diante. Em determinado momento nos chocamos com uma pedra meio submersa e quase trocamos de lugar em pleno ar, quem estava na direita foi para a esquerda e vice e versa, nosso capitão aterrissou de cara no meio do bote. No final da descida, o remo de madeira que eu usava ficou com as minhas impressões digitais esculpidas… Nunca passei tanto medo na vida!… E não vejo a hora de repetir a dose.

Mais ao sul, aos pés do Cerro Castillo – uma imponente montanha de rocha negra despedaçada e neve que lembra um castelo – tentamos fazer uma travessia em trekking de quatro dias. Um roteiro tradicional. Chuviscava quando começamos a caminhada e quanto mais penetrávamos os vales fechados, pior o tempo ficava. Depois do meio dia a chuva começou a cair forte e montamos acampamento no final da tarde debaixo de muita água. No dia seguinte a chuva não diminuiu e decidimos descansar na barraca, afinal estávamos na Patagônia e o sol poderia aparecer a qualquer instante. Ou não. Acordamos na madrugada da segunda noite com muito frio. Olhei o termômetro e fazia 5°C dentro da barraca. Lá fora estava – 5°C. Era o primeiro dia de verão.

Pela manhã a neve caia em baldes. No fim do dia havia 30 centímetros de neve para todo lado. O paso logo adiante de nós, único trecho mais técnico da travessia, estava fechado por muita neve, gelo podre e neblina. Esperamos mais um dia. Mais neve e mais chuva. No quarto dia, com o suprimento de comida defasado, abortamos a travessia e voltamos para o início da trilha, para a Carretera Austral, para pedir carona de volta à Villa Cerro Castillo e ao nosso carro. Na neve em volta da nossa barraca encontramos pegadas de huemules (um cervo andino), raposas e pumas. Era 24 de dezembro e uma deliciosa ceia de Natal nos esperava na pousadinha familiar onde nos hospedamos. Afoguei minha frustração em garrafas de excelente Merlot chileno e fiquei tão grogue que caí da cama depois, rachando o bico.

Mais ao sul, em Puerto Río Tranquilo, visitamos umas lindas formações rochosas no grande Lago General Carrera conhecidas como Capillas de Mármol (capelas de mármore). Fomos de caiaque oceânico duplo, eu e Adriana em um barco e os dois guias em outro. Navegamos por dentro das rochas, que lembravam cogumelos brotando do fundo do lago. Com a ponta dos remos e dos dedos, tocávamos a superfície áspera e fria da rocha, listrada de branco e cinza. O famigerado vento patagônico vinha de lufadas e chegava a empurrar a pá dos nossos remos como se houvesse dez quilos de areia nelas. Só conseguíamos remar quando o vento tomava fôlego. Não havia perigo sério, apenas um banho gelado, mas fizemos bastante força e confirmamos a regra: na Patagônia quem manda é a Patagônia.

Em Cochrane – última cidade ao sul da Carretera Austral com alguma estrutura – mapeamos um trekking de quatro dias dentro da Reserva Nacional Tamango. A região é criadouro de huemules e conseguimos ver e fotografar vários. Não havia outros turistas na reserva e, novamente, as trilhas ainda não estavam prontas para a temporada de verão. Os bosques de árvores centenárias, cobertas por musgos como gigantescas teias de aranha, pareciam ilustrações de contos de Edgar Allan Poe. O silêncio chegava a incomodar. Terminamos o trekking a tempo de comemorar o Ano Novo em um chalé á beira do Rio Cochrane, com a lareira acesa, comida caseira, mais Merlot e uma cama quentinha de lençóis limpos para completar. Quem pode querer mais de um Reveillon?

A Carretera Austral termina na Villa O’Higgins – meia dúzia de ruas e um aeródromo – de onde é possível atravessar por barco e trilhas do Chile para a Argentina, até El Chaltén e algumas das montanhas mais famosas do mundo… Fitz Roy e Cerro Torre. Como estávamos de carro, simplesmente fizemos meia volta e retraçamos toda a Carretera Austral de volta até Puerto Montt.
Em 59 dias de viagem conseguimos mapear 1.689 quilômetros de estradas, sendo 80% de terra e cascalho, cinco roteiros de trekking somando 102 quilômetros de trilhas, uma viagem extra de bike de 163 quilômetros em torno do Lago Llnaquihue e o projeto se concretizou. Consegui publicar, agora em janeiro de 2011, o Guia de Trilhas Carretera Austral. O livro tem 136 páginas, sete mapas e 184 fotos coloridas.

Missão cumprida? De jeito nenhum. Se você me perguntar, não fiquei satisfeito… Faltou fazer a Carretera Austral de bike, que é como ela deve ser feita! O que me obriga a voltar lá e fazer tudo de novo, no pedal… Aproveito para terminar o trekking do Cerro Castillo, explorar a região do Vale Chacabuco – onde uma organização preservacionista internacional está organizando o Parque Patagonia –, voltar a Cochamó com tempo de escalar um pouco… Enfim, mais um verão na Patagônia.

Mas, cá entre nós, será que algum dia a gente consegue ficar satisfeito de aventura?

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