2016, junho – site OUTRAS PALAVRAS

17 de junho de 2016

A BICICLETA COMO CONTRACULTURA

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O que acontece quando não se pode contar com as muletas que nossa sociedade oferece? Guilherme Cavallari rodou 6 mil km na Patagônia e Terra do Fogo para buscar a resposta, inscrita num livro e num filme

Por Maurício Ayer

“O que eu fiz não tem nada de heroico”, afirma Guilherme Cavallari sobre sua viagem de seis meses de bicicleta por toda a extensão da Patagônia e Terra do Fogo, na qual rodou nada menos que 6 mil quilômetros. É bom avisar mesmo, pois para quem não é um ciclista experiente parece um feito impressionante. Ainda mais que o seu itinerário, como se vê no mapa, cruza entre Chile e Argentina diversas vezes, o que em muitas situações significa atravessar a cordilheira dos Andes com a força das próprias pernas, levando num bike trailer(espécie de carrinho preso ao eixo da roda de trás) todo o equipamento que poderia precisar, além dos mantimentos para cada trecho percorrido.

Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas

Guilherme esclarece que não se tratava de percorrer mais quilômetros, de subir mais montanhas ou cruzar mais desertos, superar limites, esse tipo de coisa; ele buscava algo mais fundamental e, até por isso, mais difícil também. “A gente cresce nesse mundo e desenvolve uma certa indolência, um apego ao conforto. Como se carro, chuveiro quente e cama macia todos os dias fossem direitos adquiridos e que fosse impossível viver e ser feliz sem isso”, explica. Até porque esses “direitos” não fazem parte da realidade de bilhões de pessoas ao redor do mundo. A questão, portanto, era experimentar o que acontece quando não se pode contar com todas as muletas que nossa sociedade coloca ao nosso redor. “E tinha que ser por seis meses, pois durante um mês a gente se adapta, mas não vive uma real transformação”, completa.

Além de uma boa dose de solidão, a escolha foi deliberadamente pelo baixo impacto ambiental, associado a um intenso contato com a natureza, ou seja, a opção por ser parte da paisagem e não apenas observá-la. Ali, em cima do selim da bicicleta, vivendo as experiências, era possível também questionar o seu lugar no mundo, as reais escolhas em relação à vida que quer viver, refletir sobre tudo isso não a partir da posição confortável de um usuário da natureza, como uma espécie de “cliente” do planeta, mas sim como um participante dessa natureza, que reafirma um compromisso com a totalidade das coisas, quando a diferença hierárquica entre o ciclista, a árvore, o guanaco, a montanha e o passarinho praticamente se anula.

MAPA geral 01 vOficial copyEssa experiência toda é relatada em duas obras lançadas em 2015: o livro de viagem Transpatagônia: pumas não comem ciclistas (Editora Kalapalo) e o filme Transpatagônia de Cauê Steinberg (disponível no Netflix desde janeiro), editado com imagens produzidas por Guilherme Cavallari durante a viagem. Nos dois casos, há um encontro de universos: de um lado, a paisagem deslumbrante e dura da Patagônia, de outro, um homem que retira sua força e alegria de viver do reconhecimento de sua fragilidade e da fragilidade do planeta.

Guilherme Cavallari está longe de ser um novato no ciclismo, nas cicloviagens e nas aventuras. Há 20 anos, fundou a editora Kalapalo e passou a publicar livros sobre turismo de aventura, como manuais e guias de trilhas de bicicleta ou a pé, principalmente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, além da própria Patagônia. Em 17 publicações, já mapeou, organizou e publicou vários milhares de quilômetros de trilhas, organizados e descritos de maneira que outros também possam percorrê-los. Mas uma viagem tão longa e a ideia de escrever um livro de viagem de fôlego eram territórios ainda inexplorados. Ao todo, foram três anos de projeto, sendo seis meses para preparação, seis meses de viagem (de outubro de 2012 a março de 2013) e depois mais dois anos para escrever, editar e finalmente lançar o livro em 2015.

Um relato de muitas viagens

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O livro segue o curso das pedaladas através dos pampas, montanhas e vales, margeando lagos, cruzando riozinhos gelados e atravessando desertos. A narrativa tem a forma do traçado no mapa, como aliás é típico dos livros de aventura. Para quem já curte mountain bike, trecking,aventuras, perrengues enroscados que o indivíduo tem que suar pra superar, não faltam histórias e causos, o material é farto. A paisagem é realmente inspiradora, mas, ao mesmo tempo que nos deixa maravilhados por suas formas únicas e grandiosas, é uma região árida e pouco habitada, não é um lugar onde se possa sair caminhando sem lenço e sem documento. Presos às palavras imantadas do autor, vamos imaginando este serzinho minúsculo – um homem – movendo as engrenagens de um brinquedinho de duas rodas através da imensidão de pedra e gelo.

Mas a Patagônia não é só isso que se vê, é um pouco mais. Ao longo dos anos que precederam a expedição, Guilherme Cavallari visitou várias vezes a região em seu trabalho de mapear trilhas, e percorreu, em paralelo, toda a literatura de aventureiros e expedicionários que por lá passaram ao longo dos séculos. Se a bagagem material dele é a mais leve possível para poder carregar com a bicicleta, ele leva uma bagagem de conteúdo simbólico altamente densa, constituída daquilo que ele obteve em centenas de livros, filmes e reportagens, além de conversas com os “aventureiros” atuais, que vivem as transformações e dilemas da região habitada mais austral do planeta.

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É assim que esse livro se desdobra em dezenas de outros percursos, que acontecem como mapas sobrepostos em transparência. Como se o livro fosse uma rede de hiperlinks que o autor vai clicando, transformando a paisagem num universo expandido, uma biblioteca imaginária de histórias que se trançam no tecido da narrativa. No meio do caminho, topamos com o biólogo Charles Darwin, que costeou todo o sul das Américas na expedição do navio Beagle, em busca de pistas para explicar as origens e a evolução da vida na Terra. Ou ainda aventureiros como o britânico Bruce Chatwin e o francês Antoine de Saint-Exupéry (o famoso autor de O pequeno príncipe, que foi aviador e voou na Patagônia argentina). Há também personagens que oscilam entre a história e a lenda, como os bandidos estadunidenses Butch Cassidy e The Sundance Kid, que viveram o final de suas vidas na região – aqueles mesmos do filme de George Roy Hill, interpretados por Paul Newman e Robert Redford.

Como não poderia deixar de ser, o livro discute problemas muito vivos na Patagônia atual. Um exemplo urgente é o projeto de se construir dezenas de hidrelétricas na Patagônia chilena, que transformariam radicalmente a paisagem com o objetivo de suprir as necessidades da tal sociedade do conforto. Ou o igualmente polêmico projeto do magnata estadunidense Douglas Tompkins (falecido pouco após o lançamento do livro), que comprou vastas extensões na região, destinando-as à constituição de parques ecológicos.

Quanto mais roda a bicicleta, mais fundo se mergulha

Se o livro tem como base a linearidade temporal da viagem para abrir, como caixinhas, diversas outras histórias acontecidas em outros tempos, o filme de Cauê Steinberg se estrutura como uma espécie de espiral, um ciclo em contínuo aprofundamento. Logo nos primeiros minutos damos uma volta completa na viagem, com imagens e falas do início ao fim do trajeto. Mas ainda é só um sobrevoo, pois o filme retoma esse percurso, a cada vez trazendo à tona um aspecto – o significado da aventura para o viajante, a hora de tomar pé da situação e encarar a estrada, os momentos singulares, as dificuldades mais intensas, os erros de percurso. E a cada giro nos colocamos mais dentro da história, os sentidos da viagem ficam mais vibrantes, mais profundos, mais humanos.

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Cauê orientou Guilherme a filmar tudo o que acontecesse. Ele seguiu a diretriz na medida do possível e o filme pôde explorar as imagens de muitas das faces da sempre impressionante paisagem da Patagônia: montanhas, glaciares, desertos, florestas, sol, neve e muito vento. Também assistimos aos picos emocionais do ciclista, e o vemos expandir-se de alegria ou desabar no choro, quando parece que a intensidade da vida não cabe no próprio corpo. O filme é costurado por novos depoimentos de Guilherme, feitos após a viagem.

Difícil dizer se é o filme ou o livro que mais provoca a imaginação. Talvez os dois realmente se complementem: o livro explora a paisagem interior, as informações, os dilemas, as histórias de outros tempos, as personagens; o filme traz o impacto insubstituível da imagem, ainda mais com um cenário tão lindo e uma situação tão singular. Nos dois casos, sonhamos com viagens possíveis – sobre rodas, tênis, asas ou trilhos, não importa.

A bicicleta e o calmo pensar

Seja na forma de texto ou de audiovisual, Transpatagônia faz refletir. Afinal, o que realmente é necessário na vida, nesse parco tempo de nossa existência sobre a Terra? Será que vale a pena trabalhar tanto tempo todos os dias para sustentar um padrão de vida de que talvez sequer consigamos usufruir? Sabemos perfeitamente que o nível de consumo da Europa, da América do Norte e das elites mundo afora não pode ser universalizado para 7 bilhões de habitantes do planeta, e no entanto seguimos tratando este como um padrão a ser buscado, a ser suprido pelo nosso modelo de “desenvolvimento” social e econômico. Já não resta dúvida de que, seguindo neste caminho, é apenas questão de tempo para que esse brutal desequilíbrio descompense de vez e produza efeitos devastadores para o conjunto dos humanos – mas os efeitos localizados já são muito sentidos por cada um de nós, bastam alguns minutos de atenção para constatá-lo.

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Pedalar é também pôr para rodar a corrente da reflexão, sintonizar-se com o calmo pensar. Percorrer quilômetros sobre a bicicleta num só dia (pode ser algo como uma dezena até mais de uma centena, depende de cada um), havendo-se com a necessidade de mover-se com a energia de seu próprio corpo, pode ser um modo de meditação, uma maneira de liberar a mente a um conhecimento direto das coisas e entrar em contato com o que de fato importa. É aí que a bicicleta pode se tornar um vetor de questionamento também.

Guilherme provoca: “É raro quem usa a bicicleta como um espelho, não para se admirar, mas pra procurar defeitos também. E perguntar: mas o que eu estou fazendo da minha vida? Enquanto você está lá pedalando, sem mais nada pra fazer, pode questionar: espera aí, eu estou no rumo certo que eu sonhei desde criança para a minha vida? Estou fazendo o melhor que eu posso, estou investindo no meu melhor potencial físico, mental, espiritual? Ou não, estou aqui só matando o tempo?”

Guilherme encontrou o seu caminho com a bicicleta, mas tem clareza de que há uma mudança muito maior que precisa ser produzida. Então faz de sua experiência um convite, não para repetir o que ele fez, mas que cada um descubra qual é a sua verdadeira viagem neste mundo e tenha a coragem de se lançar nela. “Se a bicicleta é um passatempo, nada vai mudar. Se ela for usada como uma oportunidade de reflexão… aí na realidade não precisa nem ser a bicicleta, pode ser ler um livro, pescar, surfar…”

Para ver a matéria publicada: http://outraspalavras.net/oca/2016/06/16/a-bicicleta-como-contracultura/

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CAMINHO CERTO POR LINHAS TORTAS

ENTREVISTA COM GUILHERME CAVALLARI

por Mauricio Ayer

Como fazer da bicicleta um meio para libertar-se dos grilhões sociais? Nesta entrevista, temos a oportunidade de conhecer melhor a trajetória e as ideias de alguém que vive pedalando por trilhas nada convencionais

“Eu queria diversidade, muitas experiências novas pra tirar delas alguma clareza. Só clareza, não direcionamento. Mas não é para isso que a escola prepara a gente, a escola ensina a ter medo”. É assim que o escritor-ciclista Guilherme Cavallari descreve sua “formação”, escapando da estrada “principal” para percorrer rotas pouco conhecidas e quiçá bem esburacas, mas que lhe pareciam muito mais interessantes.

Essa entrevista tinha, inicialmente, a intenção de responder uma pergunta: como pensa alguém que faz uma expedição como esta, percorrendo toda a extensão da Patagônia, sozinho, de bicicleta? Que caminhos ele atravessou para chegar até ali?

Depois de ouvi-lo, percebe-se que, dentre tantos descaminhos, a preparação para a viagem em si é quase um detalhe – a ser cumprido com muito afinco e rigor no final. O principal é interno, é saber desaprender o medo e estar aberto ao inesperado.

As linhas tortuosas das trilhas de mountain bike são uma boa metáfora da vida desse aventureiro: o oposto do caminho curto e fácil, mas certamente belo e gratificante.

Confira a entrevista, realizada no Refúgio Kalapalo, na cidade de Gonçalves, Minas Gerais.

Guilherme, logo nas primeiras páginas do seu livro você escreve: “num mundo em urbanização desenfreada, sou o desajustado que tenta evitar o asfalto”. Como este desajustado vê a bicicleta de repente ocupando o centro de debates sobre mobilidade, direito à cidade, entre tantos outros?

Existem coisas relacionadas à bicicleta que são óbvias e que todo mundo já falou. Que é um veículo eficiente, que não polui, que promove saúde, que funciona muito bem para as distâncias curtas, que economiza dinheiro e recursos naturais. Tudo isso é verdade, mas acho que falta abordar a bicicleta por um viés menos óbvio. Por que esse frenesi todo em torno da bicicleta? Acredito que a bicicleta, como outros objetos, representa uma insatisfação com o modelo de vida que está aí disponível para consumo. Todo mundo se mata de trabalhar para poder consumir algumas coisas que são fúteis e outras que dão a ilusão de não serem fúteis. A seu modo, a bicicleta vai contra essa cultura.

Mas como a bicicleta pode ser promotora de liberdade?

O primeiro fator é econômico. Por exemplo, quem quiser ter um carro vai gastar muito mais do que gasta pra comprar uma bicicleta simples. E junto com o carro vem a escravidão do seguro, do estacionamento, do mecânico. Raríssimas pessoas conseguem desmontar e montar um carro, você tem que contratar um profissional pra isso. A bike não, qualquer pessoa com um pouco de estudo e treinamento consegue montar e desmontar uma bicicleta simples. Assim você se liberta do mecânico. Não precisa pagar estacionamento, não precisa ter seguro. Não tem combustível: combustível é arroz, feijão e banana! Você se liberta de uma porção de grilhões que estão aí só esperando você chegar perto.

Mas você pode ir além disso. Bom, eu vou falar do que eu vivi, porque é disso que posso falar com propriedade. Lá atrás, em 93 e 94, eu morei em Berlim e fui mensageiro de bicicleta (bike courier) durante um ano e meio. Eu vivia num bairro alternativo muito legal, tinha uma boa qualidade de vida e até uma situação financeira bem legal, eu ganhava mais do que se eu fosse vendedor numa loja ou operário numa fábrica. O meu trabalho era pedalar, recolher e entregar encomendas pela metrópole. Então eu pedalava em média, na melhor fase do trabalho, uns 100 km e de 6 a 12 horas por dia – no inverno menos, no verão mais.

Quando voltei, em 94, eu fui dar aula de inglês, mas o tempo todo eu me lembrava da experiência que eu tive em Berlim. Eu conheci a Adriana [Braga], fomos morar juntos e comecei a criar raízes no Brasil de novo. Foi aí que eu tive a ideia de fazer livros desenhando roteiros para poder viajar de fim de semana. Peguei o lado lúdico da bicicleta, e encontrei aí uma possibilidade de produzir e vender meus livros. Sem cair na armadilha de me tornar uma empresa, porque quanto mais a minha editora crescesse, mais eu seria empresário e menos livre eu seria. Pois aí tem outra mentira, o cara acha que, por ser empresário, é livre. Eu briguei com isso durante muitos anos.

Mas aos poucos eu fui encontrando o que pra mim é equilibrado, que é manter a empresa pequena. Eu faço tudo, eu escrevo o livro, depois eu vendo os exemplares um por um e não preciso dedicar oito horas por dia pra fazer isso, uma ou duas horas por dia bastam. O resto do tempo eu estou livre para melhorar a mim mesmo, para tentar chegar ao meu melhor potencial, que eu acho que é a obrigação de todo mundo, investir no seu máximo potencial humano.

Mas a bicicleta também pode ser muito cara, não?

Claro, a bicicleta também tem um viés perverso. Tem bicicleta de 10, 20, 50 mil reais. Um objeto que teoricamente tem o potencial de promover a liberdade também pode se tornar um ícone de consumo. O cara enxerga na bicicleta uma forma de dar uma guinada na vida, de introduzir na vida dele um pouco mais de liberdade, de não ser escravo do carro, de não ter que trabalhar anos e anos para poder comprar um carro bacana, então ele compra a bicicleta, que teoricamente vai ser um atalho. E a bicicleta vai ficando cada vez mais cara, cada vez mais tecnológica, tem seguro para bicicleta, tem ladrão especializado em bicicleta, isso não tem fim.

Se não cair nessa, vai encontrar na bicicleta um potencial libertador.

Sim. Isso está à disposição de todo mundo, qualquer um que abraça a bicicleta como meio de transporte está se libertando desses grilhões todos. Agora, se ele for mais fundo e usar a bicicleta não só como veículo de transporte mas também como veículo de questionamento, e disser: se a bicicleta me libertou do mecânico, do combustível, do seguro…

Do médico, do remédio…

Sim, claro, mas o que eu quero dizer é: se a bicicleta me libertou de todos esses grilhões, como eu faço para a bicicleta me libertar do grilhão do emprego tradicional? Como eu vou usar a bicicleta como veículo de questionamento para eu descobrir um jeito de ganhar a vida sem precisar vender minha alma ao diabo? Sem precisar fazer faculdade, mestrado, doutorado e depois trocar tempo por dinheiro, fazendo coisas que não me satisfazem para eu poder pagar por coisas que eu não preciso!

É interessante a história de como você descobriu um caminho com a bicicleta. Mas como isso poderia valer para outras pessoas?

A maioria das pessoas usa a bicicleta como lazer, como esporte, e apenas reforçam o seu status quo. É raro quem usa a bicicleta como um espelho, não pra se admirar, mas pra procurar defeitos também. Pega a bicicleta pra perguntar: mas o que eu estou fazendo da minha vida? Enquanto você está lá pedalando, sem mais nada pra fazer, pode questionar: espera aí, estou no rumo certo que eu sonhei desde criança? Estou fazendo o melhor que eu posso, estou investindo no meu melhor potencial físico, mental, espiritual? Ou não, estou aqui só matando o tempo? Se a bicicleta é um passatempo, nada vai mudar. Se ela for usada como uma oportunidade de reflexão… aí na realidade não precisa nem ser a bicicleta, pode ser ler um livro, pescar, surfar…

Você mencionou a experiência na Alemanha, mas essa sua visão de mundo tem a ver com toda a sua trajetória, não?

É verdade. Com 17 anos, em 1980, deu um monte de coisa errado na minha vida e eu abandonei a escola, que pra mim sempre foi uma experiência traumática. E fiquei seis meses bundando. Imagina, com 17 anos, solto em São Paulo, não foi legal. Fui preso, passei uma noite na cadeia… me envolvi com gente que não devia.

Aí pintou uma chance de eu ir pros Estados Unidos, e um primo mais velho, que tinha grana, falou “vai lá, vai ser legal pra você”, pagou a passagem e eu fui. Só que em vez de ficar dois meses eu fiquei dois anos. Dei uma banana pra todo mundo, arrumei um emprego de limpador de chaminés e assim banquei a minha vida. Descobri que eu era livre e não sabia. Tirei carta de motorista aos 17 anos e fui morar numa van, passei seis meses nos EUA morando dentro dela, viajando para onde eu quisesse, fazendo o que me desse vontade.

Quando voltei pro Brasil, eu era outra pessoa. Não queria fazer faculdade, não queria ter emprego em firma nenhuma, comecei a tocar a vida buscando alternativas. Dos 17 aos 34 anos, morei oito anos no Brasil e oito anos fora, alternando.

Onde você morou e o que você fazia?

Quando estava no Brasil, fui ator de teatro profissional – numa montagem do José Possi Neto –, trabalhei como humorista na rádio Transamérica… e também fazia um pouco de jornalismo gonzo, né, jornalismo da minha cabeça, divulgando matérias que eu achava que eram importantes. Trabalhei como animador de festa infantil, nunca nada formal. Duas experiências que eu tive de trabalho formal foram piores do que o trauma da escola. Me sentia castrado, aprisionado. Comecei a escrever e vender matéria para revistas, fotografar…

Quando estive fora, fui coveiro em Israel, mensageiro de bicicleta na Alemanha, catador de batata na Inglaterra, catador de maçã na Itália, carregador de mala em hotel em Londres. Ia fazendo as coisas, aprendendo línguas, conhecendo gente…

Me intriga o significado dessa sua liberdade. Quando você está lá na Inglaterra como catador de batatas ou em Israel como coveiro, esse é o seu ganha-pão, mas o que é que você está vivendo?

Para mim, é a mesma coisa que quem gosta de ler vive num romance. Quando você lê um romance de capa e espada, tipo Os três mosqueteiros, você é um mosqueteiro enquanto está lendo aquele livro, você vive aquela experiência. Essas experiências todas tinham para mim a dimensão de um livro bem realista. Então, momentaneamente, eu era coveiro em Israel e vivia aquilo durante o tempo que estivesse lá. Como catador de batatas em Cambridge, meus companheiros eram ciganos. Não sabia que existiam ciganos na Inglaterra, descobri no campo de batatas. Eu convivi com essas pessoas durante alguns meses e era como se tivesse lido um livro sobre ciganos, só que eu não li nada, eu convivi.

E, como ao ler um livro, se você já terminou um pode ler um próximo…

Eu catei maçã no norte da Itália, na região de Trento, meus companheiros eram imigrantes ilegais, sul-americanos e africanos, ou italianos do sul, calabreses, sicilianos, que são retirantes. Convivi com eles. Então posso dizer que eu sei o que é ser um retirante sulista no norte da Itália. Eu não sou, mas eu “li” um bom “livro” sobre isso. Foram experiências acumuladas, como se eu pudesse viver muitas vidas em vez de apenas a minha parca existência.

Essa é outra coisa que a escola, a formação acadêmica, formal, não promove. Isso é tudo considerado perda de tempo. Você tem que fazer muito da mesma coisa e ir acumulando, acumulando, acumulando. Não estou dizendo que seja necessariamente ruim, mas não serve para mim, e acredito que não sirva para muitas outras pessoas também. Para mim não fazia sentido, nunca fez. Eu queria diversidade, muitas experiências novas pra tirar delas alguma clareza. Só clareza, não direcionamento.

Mas não é para isso que a escola prepara a gente, a escola ensina a ter medo.

A escola ensina a gente a mirar uma trajetória.

E a ter medo de sair dela.

E como essa viagem e este livro sobre a Patagônia surgiram na sua vida?

Sempre li muito e admirei a estética, o estilo ou a mensagem. Sempre quis me embrenhar nesse meio, tentar passar minha mensagem, não no sentido de passar uma verdade, queria só contar a minha experiência, o que eu aprendi no meu tempo de vida.

Então eu já tinha escrito e editado 17 livros, entre guias de trilhas e manuais. Eu vinha adiando esse projeto de ter um livro de literatura de viagem, um livro que contasse não só o que meus olhos viam em contato com a natureza, mas o que a minha mente pensava. Eu queria produzir um livro com essa linguagem, com esse conteúdo. Então essa viagem foi planejada para isso: eu vou viajar para a Patagônia por seis meses de bicicleta porque é um lugar onde eu sei que coisas ricas e interessantes vão acontecer comigo, dentro e fora da minha cabeça. E a ideia era depois pegar esse material e botar no papel.

Transpatagônia é, espero, o primeiro livro de uma sequência. Porque aprendi muito com ele, mas sei que estou no começo, bem no começo. Tenho convicção de que se eu continuar nesse percurso, o meu quinto, sexto livro a partir desse vai ser de outra qualidade.

Escrever esse livro foi como outras experiências anteriores, eu embarquei nele sem saber se tinha capacidade, mas acreditando que se eu me esforçasse algo sairia dali. Acho que é um potencial que todo mundo tem. Não especificamente escrever, mas qualquer um que se propuser a fazer uma coisa que fala ao seu coração e fizer com empenho, vai produzir alguma coisa boa. Eu tenho essa fé.

Como em outros momentos, trata-se de se expor à vida, em vez de ficar só em um lugar protegido, não acha?

Tem uma frase incrível do Edward Abbey (escritor e eco-anarquista estadunidense que viveu de 1927 a 1989) que é a seguinte: “A vida é curta e de repente a gente morre. Será? Não. A vida é sensacional, e de repente a gente morre”. Muda tudo! Na primeira frase só tem tragédia. Mas não, a vida é maravilhosa, e de repente, uai, a gente morre! Fantástico.

Outra frase sensacional: “Como derrubar um governo? (Em inglês é “overthrow a government”.) Faça sua própria cerveja, destrua sua televisão a pontapés, mate sua própria carne, construa sua própria cabana e mije da porta dela quando você bem quiser.” Aí você derrubou um sistema. É assumindo responsabilidades. Sem esperar que nada venha até você.

Para ver a entrevista publicada: http://outraspalavras.net/oca/2016/06/16/o-caminho-certo-por-linhas-tortas-de-um-ciclista/

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