EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA / YENDEGAIA, CHILE

25 de janeiro de 2013

Trabalho e morte para manter a vida… Caleta Ferrari, Baía Yendegaia, Chile

Yendegaia é uma baía do Canal Beagle, a oeste do porto argentino de Ushuaia. É a primeira baía chilena para quem entra pelo Beagle vindo do Oceano Atlântico. Muitos anos atrás havia uma famosa estância produtora de gado e ovelhas no seu fundo, na Caleta Ferrari, chamada obviamente Estancia Yendegaia. Mas, resumindo de forma drástica sua atual situação, a baía Yendegaia hoje é beco sem saída, literalmente.

Foi por causa da Baía Yendegaia, da Caleta Ferrari e do meu desejo de explorar e tentar algo inédito e inusitado, que fique tanto tempo sem conexão com o resto do mundo e não pude alimentar o blog ou dar notícias aos amigos…

Empresas que apóiam a EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÕNIA

Depois que Adriana, minha esposa, e eu completamos o trekking de Puerto Williams à Baía Windhond – que relatei no post anterior aqui no blog – voltei com a Adri até Ushuaia e a acompanhei até o aeroporto. Ela voltou a São Paulo e levou um grande pedaço do meu coração. Eu voltei a Puerto Williams para tentar chegar até Yendegaia.

Esperei três dias na Ilha Navarino até embarcar em uma pequena lancha de passageiros em direção ao posto policial 2 de Mayo, dos Carabineros de Chile, na entrada da Baía Yendegaia. A lancha estendeu um pouco seu trajeto e me deixou sobre uma pedras que servem de cais na Caleta Ferrari. Eu, minha bike desmontada e meu bike trailer com todo meu equipamento e comida para 12 dias.

Dias antes de ir a Ushuaia eu havia conseguido, através do rádio VHF dos Carabineros, falar com um dos dois únicos residentes da Caleta Ferrari, José Machuca – um gaucho chileno que vive há quinze anos nesse fim de mundo, funcionário do atual proprietário da Estancia Yendegaia, Douglas Tompkins. Contratei Machuca para me levar com todo meu equipamento, a cavalo, pelas montanhas ao norte de Yendegaia, até o Rio Azopardo, deságue do enorme Lago Fagnano no Seno Amirantazgo, uma baía do Oceano Pacífico. De lá eu poderia seguir pedalando até Porvenir e cruzar o Estreito de Magalhães de volta a Punta Arenas, pois o Exército do Chile está construindo uma estrada nessa região, que um dia chegará até a Baía Yendegaia. Seriam quatro dias cavalgando por uma trilha que Machuca havia feito pela última vez em 1997. Eu seria a primeira pessoa a levar uma bicicleta por essa trilha e estava bastante entusiasmado com a ideia.

Caleta Ferrari, vista para a Baía Yendegaia

Para quem não leu ainda meu post aqui no blog sobre o Parque Patagônia e o fantástico roteiro de trekking selvagem que fiz por lá, Tompkins é o fundador da marca The North Face e um controverso filantropo que compra verdadeiros latifúndios na Patagônia e os transforma em parques, que ele depois doa aos governos onde as terras estão situadas.

Cavalo recém morto e sendo carneado para alimentar humanos e caninos em Caleta Ferrari

José Machuca vive com a belga Annemie, que chegou há seis anos na Caleta Ferrari em um veleiro, depois de viver e viajar nesse barco por oito anos com seu ex-marido, da Bélgica até a Antártica. Annemie se apaixonou por Machuca, terminou o casamento e a fase náutica de sua vida, virou uma gaucha e hoje vive no campo cercada de cavalos, cachorros e gatos.

José Machuca ferrando um cavalo para nossa travessia de Yendegaia ao Rio Azopardo

Encontrei Machuca em um velho um galpão ferrando um cavalo que o próprio havia domado. O bicho era arisco e dificultou bastante o trabalho. José perdeu a paciência meia dúzia e vezes, terminando por chutar, esmurrar, bater com um pedaço de pau, chicotear e xingar o animal de tudo quanto é nome. Ele inclusive ameaçou matar o cavalo e alimentar com ele seus quatorze cães – uma promessa que ele não cumpriu, pelo menos dessa vez.

Machuca e Annemie vivem cercados de seus bichos… Companhia para ela, ferramentas de trabalho para ele

Annemie eu conheci na cozinha, fazendo pão ao lado de um fogão a lenha, com três cachorros deitados a seus pés, quatro gatos adultos e um minúsculo filhote acomodados aqui e ali, mais dois cachorros deitados confortavelmente em um sofá ancião e outro sentado no banco da mesa de jantar onde me sentei. O rádio VHF dava notícias do mundo em diversas línguas, novidades de veleiros que navegavam a região. O rádio FM tocava música sertaneja brasileira em versões espanholas, que faziam o que já era ruim soar ainda pior.

Montes PIramide, a leste da Baía Yendegaia e possíveis de serem escalados a partir da Caleta Ferrari

Não demorou muito e eu já me sentia um velho amigo de Annemie, que me serviu de chá preto e um grande pedaço de pão fumegante, que besuntei rapidamente de manteiga antes que o grande gato preto sentado sobre a mesa atacasse minha comida. Tive que comer com os cotovelos bem abertos, para me defender do cachorro que sentado no banco ao meu lado, que olhava sem piscar meu pão com a baba grossa já pendurada no canto da boca.

Rio Yendegaia, extremamente alto pelo degelo e intransponível, mesmo a cavalo

Fui informado que não conseguiríamos partir no dia seguinte de manhã, como havíamos programado. O Rio Yendegaia, que corre atrás da Caleta Ferrari e é alimentado pela geleira Stoppan – parte do campo de gelo da Cordilheira Darwin – estava alto demais, mesmo para os cavalos. O problema era o clima. Nos últimos dias havíamos tido dias de até 25° C quase sem vento – alegria dos turistas da Terra do Fogo, mas algo inusitado e extremamente raro, que fazia todos os residentes locais pensar em aquecimento global e derretimento das geleiras.

Pinguim Antártico, ou Chin Strap Penguin, em inglês, que apareceu na Caleta Ferrari

Segundo Annemie e Machuca, o rio baixaria em dois ou três dias. Eles nunca viram o rio permanecer alto mais que cinco dias em todo o tempo que viveram na região. Decidi esperar.

Casa de José Machuca e Annemie em Caleta Ferrari, Baía Yendegaia, Chile

Foram dez dias de espera. O rio só subiu de volume. Os dias foram ficando mais e mais quentes, atingindo o absurdo de 27° C em Puerto Williams e 30° C em Torres del Paine. Todos os recordes de temperaturas altas dos últimos 103 anos foram batidos. Eu estava ilhado, isolado, incomunicável e sem transporte para sair da Caleta Ferrari. Cruzar o rio e alcançar os Carabineros, por uma trilha de duas horas e meia a cavalo, era a única saída possível do fundo da Baía Yendegaia.

Castor caçado e morto por José Machuca, cuja carne alimentou os quatorze cães da propriedade

Nesse período de espera fui cavalgar algumas vezes com Annemie e turistas que chegavam em veleiros, fui pescar trutas com Machuca, servi de intérprete a um barco brasileiro que ancorou na baía e acompanhei todos em um cavalgada, assisti a Machuca laçar e matar um cavalo para se alimentar e alimentar seus cães, vi também ele descarnar um castor para o mesmo fim, entendi e vivi o que é realmente “viver da terra” em um lugar onde só alguém com extremo senso de sobrevivência e habilidades sem fim consegue viver.

Cavalos selvagens, que José Machuca deve caçar, domar ou matar em Yendegaia

José não é contratado para cuidar das terras, não há nada para cuidar por lá. Seu trabalho é livrar a região de cavalos e vacas que se tornaram selvagens depois que a Estancia Yendegaia fechou e abandonou os animais à sua própria sorte. Para fazer seu trabalho ele laça e doma cavalos e cria cachorros, que servem como ajudantes de vaqueiro. Ele veste botas e bombachas todo o tempo e a longa e afiada faca que leva presa à cintura, na parte de trás do cinto, não serve de adorno gaucho – é um instrumento eficiente e muito usado.

Arreios, estribos, correias, laços… Tudo feito por José Machuca a partir do couro de animais que ele mesmo caçou e matou

Seu laço é feito de couro de vaca, que ele mesmo caçou e matou, curtido e trançado. As correias de seus cavalos é costurada com fios de couro de cavalo, que ele caçou e matou. Seu cinzeiro é o casco de um cavalo selvagem. Annemie construiu e cuida da uma estufa de vegetais, faz bicos de cozinheira e marinheira em grandes veleiros com turistas, ajuda José a juntar os cavalos já domados que pastam soltos pela propriedade, serve de guia em cavalgadas pela região. Os dois trabalham o tempo todo, o dia todo, todos os dias. Suas mãos são grandes e rudes, de unhas sempre sujas de terra, sangue ou fuligem.

Annemie, Guilherme Cavallari e José Machuca antes do meu embarque de volta a Puerto Williams

No décimo dia de minha longa espera, chegou a lancha dos Carabineros de Chile para uma visita. Apertei a mão do tenente responsável pela área e fui logo pedindo uma carona de volta a Puerto Williams. Por sorte ele concedeu espaço no barco e, depois de quatro horas de navegação com forte vento a favor, cheguei de volta à cidade de onde havia partido para a Caleta Ferrari. De lá cruzei o Canal Beagle a Ushuaia e pedalei dois dias até chegar a Tolhuin, onde estou no momento. Daqui continuo meu caminho rumo norte, a Bariloche, ao fim da Expedição Transpatagônia.

Link para o CRONOGRAMA da EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA no Blog:

https://www.kalapalo.com.br/index.php/cronograma-estimado-expedicao-transpatagonia/

Link para o LISTA DE EQUIPAMENTO da EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA no Blog:

https://www.kalapalo.com.br/index.php/expedicao-transpatagonia-equipamento-completo/

Uma resposta para “EXPEDIÇÃO TRANSPATAGÔNIA / YENDEGAIA, CHILE”

  1. NELSON COSER disse:

    Realmente fantástico o entrosamento homem e natureza. Às vezes esta parece inóspita. A história de José Machuca e sua companheira é fantástica. Gostei muito do relato, aqui exposto com muita propriedade.

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