JULIETA HERNÁNDEZ – LUTO E INDIGNAÇÃO

8 de janeiro de 2024

A jovem artista circense venezuelana e cicloviajante Julieta Hernández foi brutalmente assassinada enquanto viajava de bicicleta pela Região Norte do Brasil.

Os detalhes do ataque que ela sofreu são tão sórdidos e horrorosos que causam asco. Estuprada, queimada e possivelmente enterrada viva por ser uma mulher viajando sozinha de bicicleta. Um crime tão cruel e simbólico que merece classificação particular: ciclofeminicídio

O assassinato de alguém em situação de dupla vulnerabilidade. Um crime não apenas contra a mulher, mas também contra o ato extremo da liberdade sem motor.

Não importa o sexo, não importa a idade, não importa a raça, alguém pedalando em ruas e estradas é tratado como intruso, como subversivo. Obrigar os onipotentes motoristas de carros, motos, ônibus e caminhões a dar espaço ao ciclista, obrigá-los a prestar atenção em alguém que se desloca numa velocidade orgânica num espaço desumanizado, onde impera o velocidade e a força das máquinas, expõe a absurda ausência de natureza e de humanidade.

— Lugar de bicicleta é no parque! — é um grito que já ouvi incontáveis vezes.

Já ouvimos gritos semelhantes, às vezes ditos entredentes, nas entrelinhas, mas de igual agressividade: lugar de mulher é em casa, no tanque, na frente do fogão ou na cama, à disposição do homem.

É inegável que Julieta estava em situação de vulnerabilidade, exposta por ser mulher, exposta por estar sozinha e exposta por ser ciclista num mundo de automóveis. Antes de quaisquer comentários “inteligentes”, não interessa que Julieta pedalava sozinha pelo Brasil, um dos países mais violentos do mundo, em especial para mulheres. Não interessa que ela era venezuelana ou artista de rua. Suas escolhas não resultaram em sua brutal tortura e morte. As escolhas de seus algozes e da sociedade que os criou é que estão em cheque, que merecem escrutínio e crítica. A vítima não tem culpa pela roupa que veste ou pelo veículo que usa.

A história das mortes de Julieta merecem ser contadas e repetidas, embora sejam dolorosas e asquerosas. O crime tem que ser investigado não apenas nos pormenores de cada ato, mas também nas profundezas de suas intenções. Que país estamos construindo? Que cidadãos estamos criando? Aonde queremos chegar?

Não acredito que a maioria de nós, brasileiros, esteja feliz em viver num país onde toda mulher é uma potencial vítima e todo homem é um potencial predador. Um país armado no sentido literal e simbólico. Um país dividido apenas em agressores e agredidos. Um país onde as minorias, mesmo aquelas de incontestável maioria numérica (como pretos e pardos, pobres e mulheres), são obrigadas a se submeter aos desejos de uma absoluta minoria numérica (homens brancos e ricos).

O covarde assassinato de Julieta escancara nossas entranhas: não suportamos mulheres independentes, livres, que ousam viver a vida sem fronteiras a partir da própria criatividade. “Meninas vestem rosa. Mulheres devem ser submissas a seus homens” (citando a ex-Ministra Damares, segundo a cartilha de Bolsonaro).

A morte de Julieta é também um atentado contra todas as mulheres, contra todos os ciclistas, contra todos os criativos. Com Julieta morre um pouco do feminino. Assim, com o coração apertado e o estômago embrulhado, grito o mais alto que posso: — Lugar de mulher é onde ela quiser!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


MARCAS QUE APÓIAM NOSSOS PROJETOS: