TRAVESSIA DO COMPLEXO DO BAÚ

6 de agosto de 2011

Relato escrito por mim em 2005 e publicado na revista Aventura e Ação, na sessão Vida Dura. Revisado e atualizado para esse blog.

Escalar é legal

Ginásios de escalada fazem o maior sucesso nas grandes cidades. Também pudera, escalar é muito legal e mais simples do que se imagina. Foi-se o tempo em que equipamentos e técnicas eram privilégios dos poucos bem informados e endinheirados. Hoje em dia só não escala quem não quer. Não faltam bons cursos (mas fique esperto com os Manés que aprendem a fazer rapel e já saem ensinando escalada por aí…), literatura especializada, revistas segmentadas, sites específicos e picos disponíveis. E, pra facilitar ainda mais, a gente ainda pode treinar em ginásios cobertos e aclimatados! Mas, para mim, nada substitui o prazer da essência do esporte: ir para a rocha!

A rocha

Imagina a cena: 1946, o pedreiro Antonio Cortês chama seu irmão e diz que sonhou que estava em cima da Pedra do Baú. No sonho ele viu o caminho para o topo. Equipados com sapatilhas de sola de sisal, os dois partem para o pico. E, pasmem, conquistam a montanha! Nenhum dos dois treinou em ginásio, não usaram pó de magnésio para secar as mãos ou mosquetões que, para eles, era espingarda de museu.

Mas ainda hoje tem gente que sonha com a Pedra do Baú. Fácil de entender. Basta visitar São Bento do Sapucaí, cidade ao pé da pedra. O conjunto de rochas (Bauzinho, Baú e Ana Chata) domina o cenário. Um monumento! Não consigo achar outra palavra. Poucas montanhas no Brasil, e nenhuma outra no estado de São Paulo, têm a energia, a história e a imponência do Complexo do Baú.

Com tudo isso na cabeça lá fui eu brincar de homem-aranha…

6:49

Acordo sozinho no Abrigo de Montanha da Montanhismus Escola de Escalada, do xerife do Baú, Eliseu Frechou, e sua esposa, Beth. O Abrigo é uma espécie de consulado geral da República da Escalada, onde todos se encontram. Nada mais que um quarto grande com vários beliches artesanais, cozinha coletiva, banheiros masculino e feminino, pôsteres e adesivos para todo lado (de escalada, claro, você esperava o que? Equitação?)

Hamilton Miragaia, outra figuraça da região, amigo e guia, chega para me acompanhar. Ele dirige o Projeto Transmantiqueira, uma rede de trilhas ligando todos os principais picos e pontos de montanhismo da Serra da Mantiqueira. Um projeto gigante, audacioso, comparável aos mega-roteiros de trekking dos EUA e Europa.

Tomamos o tradicional café da manhã na padoca de São Bento, enchemos as mochilas de ataque com amendoim, paçoca, bolachas, bananas, chocolate e tudo mais para a verdadeira “farofa vertical” de lei, pegamos os demais companheiros – todos “minhocas da terra”, nativos do Baú, como diz o Hamilton – e fomos para o Bauzinho.

8:28

Tranco o carro e começa a aventura. A trilha sai do estacionamento do Bauzinho e vai direto para o Baú. Mato espesso, bonito. Trilha bem conservada e fácil. Marco bobeira e não passo protetor solar, vou me arrepender mais tarde.

9:06

Chegamos no começo da Via Normal do Baú. Em escalada os caminhos para o topo são chamados de “vias” e cada uma tem seu nome de batismo, criado por seus conquistadores. Uma vez conquistada, a via não pode ser alterada sem a autorização dos conquistadores. Regra de montanhismo. As vias chamadas de “normal” são geralmente as mais fáceis, mais simples, as pioneiras em cada montanha.

Vamos em direção ao “bico” do Baú. Passamos logo abaixo dele. Caminhamos e escalamos na crista da montanha, com precipícios dos dois lados. Céu rasgado, horizonte longe, urubus planando abaixo de nós e o vento ganha forma de abraço. Misto de prazer e medo. Coisas que só acontecem com a gente na crista de uma montanha.

Encontramos penas e urubu e prendemos algumas nos capacetes. Hamilton diz que isso tem um poder mágico de atrair bons fluídos. Um minuto depois espremo cocô de urubu com a mão na rocha. Não deixa de ser um tipo de fluído, concluo. Mas questiono se é “bom” enquanto limpo a mão nas calças. De um modo, a tal magia funciona mesmo… E fede.

10:21

Topo do Baú. Imagino o que sentiram os irmãos Cortês em 46. Lembrei da minha primeira vez naquele cume, em 1977, aos 15 anos, depois de ter subido pelas escadas da Face Sul e bivacado no topo em meio a uma tempestade de verão. Lembro da sensação de dormir sentado, amontoado com mais cinco adolescentes molhados e sentindo todos os pelos do corpo eriçados pelo acúmulo de energia elétrica dos relâmpagos próximos. Foi sem dúvida uma roubada! Mas deixou sequeleas em mim… Fiquei viciado em aventura.

Hoje a emoção é outra, mais sutil. Não fizemos nada excepcional, mas dá uma pontinha de orgulho e muita satisfação. Tento entender melhor a sensação. Acho que ficamos orgulhosos por enxergarmos a rocha, a montanha, como algo vivo, com a qual trocamos experiência.

Escolhemos uma sombra e começa o piquenique. Só faltou o frango assado. Do nada pintou um fantástico bolo de cenoura. Todo mundo comendo com as mãos imundas, unhas pretas, misto de pó de magnésio, terra e, no meu caso, cocô de urubu. No fundo somos todos adolescentes novamente. Descemos pelas escadas da Face Norte.

11:11

No pé da Ana Chata. Trânsito na rocha. A ética diz que devemos esperar calmamente, quem chega primeiro tem prioridade via. Mas um bando de homens (somos em cinco) na pilha para escalar, quando para na via, só sai besteira. Musiquinhas de sacanagem, tiração de sarro, pose para fotos… Decididamente, adolescentes… E eu quarentão!

Escolhemos a Via Peter Pan. Clássica. Hamilton e eu formamos a primeira dupla. Toda escalada é dividida em “cordadas”, trechos de extensão variada, em função do comprimento normal de uma corda de escalada (50 m). Ao final de cada trecho existe uma “parada”, um ponto em que existem duas (no mínimo) ancoragens fixas à rocha (peças de metal batidas a martelo na rocha). Numa dessas paradas ajudamos uma menina a vencer um lance difícil.

Eu tinha acabado de perguntar a ela como conseguia escalar com unhas tão grandes, bem pintadas, esmaltadas, um luxo.

“Ah! Eu me viro!”.

Dois minutos depois ela se virou, caiu (nada grave), e lá se foi uma das belas unhas. Gotas de sangue na rocha. Ficamos muitos minutos ali, Hamilton e eu, ajudando, consolando, esperando, enquanto o sol tostava meu pescoço. Eu só pensava no maldito protetor solar, trancado dentro do carro!

12:29

Topo da Ana Chata. Mais farofa. Será que todo montanhista é glutão ou nós somos a vergonha do esporte? Ninguém se dava ao trabalho de limpar as migalhas de bolo de cenoura da roupa ou as cascas de maçã presas entre os dentes.

“Alguém trouxe fio dental?”
“Usa a corda!”
“Cadê a menina em apuros?”
“Foi correndo pra manicure…”
Alguém já viu adolescentes falar sério?

13:46

Novamente no pé da Ana Chata. De volta à trilha, rumo ao carro. Comento com o Hamilton que “ainda bem que não temos que fazer rapel para descer a via”. Seria muito chato. Fico pensando nas pessoas que vêem no rapel uma atividade por si só, um objetivo. Lembro da primeira vez que rapelei e da emoção que senti. Gostei e me interessei por aprender mais sobre o esporte. Na sequência descobri a escalada e rapel ficou chato. Foi uma espécie de evolução natural. Comento minha linha de raciocínio com o Hamilton, que solta o veredito: “Rapel é coisa de coxinha!” Sem entender direito o que isso quer dizer, passo a próxima meia hora rindo sozinho.

Na trilha alguém brinca: “quem chegar por último paga a cerveja”. Pronto. Virou corrida. Um bando de marmanjos, com barba branca na cara, bufando no mato, se matando para não ficar para trás. E eu nem ligo muito pra cerveja!

14:30

Ê vida dura! Suados, fedidos, sujos e felizes, tudo em exagero, chegamos de volta ao estacionamento. Seis horas de ação e muita aventura. Enquanto descansamos á sombra de uma árvore, sentados em bancos de madeira ao lado da barraquinha de guloseimas do estacionamento do bauzinho, faço a besteira de reclamar de dor na ponta dos dedos dos pés – martírio de todo escalador.

“Corre pra manicure!”
“É pedicure, Mané!”
“Nem um nem outro, é pedicuro!”
“Você quer dizer pé de couro?”
“Isso é o cascão que ele tem no pé!”
E por aí em diante, feito um bando de adolescentes…

Para quem se animou… A Via Normal do Baú e a Via Peter Pan, na Ana Chata, são escaladas relativamente fáceis, muito bonitas e históricas. Obviamente não são para leigos e muito menos para gente sem equipamento. A dica é: depois de fazer um bom curso de escalada e treinar em um ginásio, elas podem ser objetivos realistas e gratificantes. Experiências únicas.

Mas lembre-se: o primeiro homem de uma cordada, aquele que “guia a via”, arriscando-se mais que os demais companheiros, precisa estar seguro de que aguenta a missão. Sua técnica tem que estar afiada para não colocar a dupla, ou trio, numa roubada. Uma alternativa aos menos experientes é contratar um guia local ou procurar um escalador mais maduro para guiar. Eu sou adepto ferrenho da contratação de guias locais, “minhocas da terra”, como diz o Hamilton. Com eles, além de escalar, a gente aprende mais sobre a região, os costumes locais e promove um importante intercâmbio cultural.

Vai para o Baú? Liga para o Hamilton, conheça o Brinquinho, o Fabrício, o Alan, o Felipe, meus companheiros nessa aventura… E não esquece de mandar um abraço meu ao Eliseu e á Beth!

Contatos

Montanhismus Abrigo e Escola de Escalada: http://www.montanhismus.com.br/
Casa de Pedra (Ginásio de escalada em São Paulo: http://www.casadepedra.com.br/escalada/

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