DENTES DE NAVARINO – RELATO DO MAPEAMENTO

17 de agosto de 2011

Relato da expedição de mapeamento do roteiro, feito no verão de 2008/2009, minuciosamente publicado no meu livro Guia de Trilhas Trekking (Vol. 2) (link para resenha do livro aqui no blog).

Os Dentes de Navarino

Dios nos cría y el viento nos amontona, diz um tradicional ditado argentino muito usado em toda a Patagônia, por razões óbvias. “Deus nos cria e o vento nos amontoa” em cabanas, fazendas, vilas, cidades ou simplesmente dentro de trêmulas barracas de nylon, como geralmente acontece comigo por aquelas bandas.

Mas não é verdade absoluta que o vento ou o frio aproximam pessoas na ponta austral do continente americano. No final das contas acho que a imensidão horizontal das estepes semidesérticas dos pampas, a vertiginosa altura das montanhas de granito, as massas geladas dos Andes patagônicos, a confusão labiríntica dos fiordes e canais da Tierra del Fuego chilena, o volume trovejante dos rios pastosos de degelo e, acima de tudo, a consciência do abandono – a definição mais precisa da distância geográfica na Patagônia – conspiram muito mais para aproximar as pessoas. O vento apenas leva a culpa.

Mas, ao mesmo tempo, essas características geográficas também conspiram para nos separar uns dos outros. É paradoxal, mas faz sentido. Diante de tanta grandeza, vem um desejo de isolamento, uma busca pela calma meditativa que só se conquista sozinho. É assim que funciona em locais onde a natureza é exuberante.

Quando o avião sobrevoou a Ilha Navarino, no Chile, para pousar em Ushuaia, em território argentino, pude ver do alto os Dientes de Navarino – meu destino nessa viagem. Picos pontiagudos, negros, corroídos por um dos piores climas do mundo e enfileirados lado a lado como em uma boca sem lábios. Senti um arrepio correr minha coluna e se esconder no meu estômago, mas pode ter sido uma turbulência no vôo. Essa pequena cordilheira se eleva praticamente do nível do mar até pouco mais de mil e cem metros de altitude, fatiando a grande ilha em duas metades mal-divididas. A parte sul é bem maior. De leste a oeste Navarino chega a 87 quilômetros em sua maior extensão, de norte a sul não passa de 45 quilômetros. De sua ponta mais austral até o começo da Península Antártica são 875 quilômetros de mar aberto, passando ao lado do temível Cabo Horn e suas centenas de naufrágios e milhares de afogados.

O vento soprava um pequeno furacão sobre o Canal Beagle e as águas estavam repletas de carneirinhos brancos. Quanto mais o avião se aproximava da pequena pista de pouso, mais balançava. Era como se fôssemos dar um cavalo de pau a qualquer momento em pleno ar. Lembrei que seis meses atrás um amigo pousou no mesmo aeroporto e quase foi parar no mar, depois de uma derrapada por excesso de gelo na pista. O inverno anterior havia sido especialmente branco e frio. Agora, no verão, mesmo as montanhas mais altas estavas quase completamente peladas de gelo. Engraçado como, de repente, todo mundo agora presta atenção e comenta sobre mudanças climáticas. Uma discussão inútil na Patagônia e Terra do Fogo. Aqui o clima muda a cada duas horas. Sempre foi assim.

Fora o vento, tudo estava tranquilo lá embaixo no canal que divide Chile e Argentina. Isso é raro. Entre 1826 e 1830 o navio britânico HMS Beagle descobriu e mapeou esse canal de ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Anos mais tarde, a mesma embarcação transportaria o naturalista Charles Darwin em uma viagem de volta ao mundo e à idealização da Teoria da Evolução das Espécies.

Em 1870, Peru e Bolívia se uniram e declararam guerra contra o Chile, por conta das minas de salitre na região entre os três países, em território chileno. Na época havia controvérsias entre Chile e Argentina em relação à fronteira sul dos países, em toda a Patagônia. Para evitar ser atacado também pelo sul, o Chile entregou pacificamente a Patagônia aos argentinos, estabelecendo uma linha fronteiriça imaginária passando pela Cordilheira dos Andes. Esse tratado, no entanto, estabelecia dois parâmetros distintos de divisão territorial – o topo das montanhas mais altas e também o sentido dos rios. Dois pesos, duas medidas. Não demorou nada e começaram novos conflitos.

Em 1881, no auge de uma corrida pelo ouro descoberto na Terra do Fogo, um imigrante croata chamado Julio Popper, radicado na Argentina, tentou obter uma concessão para exploração do mineral junto ao governo chileno. Recusado, por não ser cidadão daquele país, seguiu para Buenos Aires e introduziu uma dúvida geográfica nos gabinetes burocráticos do governo, questionando a posição e o direcionamento do Canal Beagle. O conflito prosperou até que , em 1978, conforme constava em documento assinado pelos dois países, a Inglaterra foi convocada para arbitrar a questão fronteiriça no canal. Depois de anos de estudos geográficos, históricos e jurídicos, a coroa inglesa decidiu que o canal e todas suas ilhas sempre foram e deveriam continuar sendo chilenas. A junta militar ditatorial que governava a Argentina então ignorou a arbitragem e enviou sua armada para tomar as ilhas do canal. A armada chilena, a mando do ditador Pinochet, estava à espera. A guerra era iminente. O Papa João Paulo II enviou então um cardeal a cada capital para negociar um acordo de não agressão com ambas as partes, prometendo ele mesmo arbitrar a questão. Obteve sucesso.

Em 1984, dois anos depois da fracassada tentativa argentina na Guerra das Malvinas e do apoio chileno aos ingleses durante o conflito, o Vaticano redesenhou o mapa da região mantendo as ilhas como chilenas e o canal dividido, mas compartilhou a península Antártida entre Chile e Argentina – que não tinha até então direito algum sobre o continente gelado e suas potenciais riquezas. De toda essa confusão, restam ressentimentos mútuos e velhos canhões enferrujados apontados uns contra os outros.

Minha travessia do Canal Beagle foi sem incidentes, surpreendentemente calma na minúscula lancha inflável com teto de lona plástica e na companhia de Adriana, minha mulher e companheira de trekking, e três argentinos – empresários que cruzavam a fronteira para inaugurar um restaurante em Puerto Williams, capital da ilha e base da marinha chilena. O Papa ficaria orgulhoso.

Metade dos pouco mais de dois mil habitantes de Puerto Williams é militar. A metade civil vive quase toda da pesca de centollas – carangueijos gigantes – abundantes nas altas latitudes tanto no norte quanto no sul. Em mais um exemplo de divergência entre Chile e Argentina, quando a temporada de pesca do crustáceo termina no Chile, começa na Argentina, mantendo o bicho sempre na rede e comprometendo a sobrevivência da espécie. Nem a biologia dos dois países consegue se entender.

A vida em Puerto Williams é pacata beirando a monotonia letárgica, mesmo durante a temporada de verão e com a chegada dos poucos turistas. Não há teatro, cinema ou livraria decente. O estádio de futebol estava sendo gramado na minha visita e era a piada local, já que a grama não sobreviveria ao clima seco e frio sem cuidados extremos. O museu exibia as mesmas peças indígenas desde sua inauguração, há mais de dez anos. A única exibição dinâmica que encontrei na vila foi um placar ao lado da escola indicando o nível de radiação UV, já que o buraco na camada de ozônio fica nos meses de verão estacionado logo acima da região. Perguntei a um chileno com quem fiz amizade o que as pessoas faziam com relação ao problema da alta radiação UV.
“Nada,” disse ele, “ninguém usa bloqueador solar aqui”.
“Mas por quê?!”
“Falta de informação, ignorância, preconceito, falta de dinheiro. Um monte de razões e razão nenhuma.”
“Você usa?” indaguei.
“Eu não, soy macho!

Enquanto isso, do outro lado do canal, alguns quilômetros mais ao norte, Ushuaia atrai milhares de turistas com o título de “a cidade mais austral do mundo”. Vende camisetas, canecos, faixas, adesivos, cartões postais, canetas, cuecas e camisinhas com a inscrição “fim do mundo”. No controle de alfândega do porto argentino, confrontei o policial federal dizendo que Puerto Williams ficava mais ao sul. Nitidamente irritado ele respondeu: “Ushuaia é a cidade mais ao sul, Puerto Williams é o povoado mais ao sul!”. Pensei em cutucá-lo sobre a questão das Ilhas Falkland, ou Malvinas, porque vi na cidade um monumento e uma avenida chamados Malvinas Argentinas, mas desisti temendo alguma reação violenta – não se brinca com um sujeito armado.

As opções de hospedagem e alimentação em Puerto Williams são restritas. As pousadas, ou hostales, variam de muito simples a miseráveis, com raras exceções. Um dos que visitei tinha um turista loiro, de cabelo rastafári, dormindo no tapete da entrada enrolado na própria mochila. Quem abriu a porta foi um espanhol recém-chegado à ilha e quem me deu informação sobre o estabelecimento foi um belga maltrapilho, entre uma colherada e outra de cereais Kellog’s (o tigre Tony vestido de gaúcho)… Tudo em francês, que eu entendo muito mal. Em um segundo albergue, com apenas duas camas de solteiro para turistas, ambas lotadas com quatro ingleses, fui recebido por um chileno muito gordo que comia enormes quantidades de pão, que ele cobria com pequenas montanhas de manteiga. Os vastos bigodes polvilhados de migalhas. Instintivamente olhei debaixo da mesa, para me certificar que não havia um quinto estrangeiro dormindo por lá.

Terminei hospedado no melhor hotel da cidade, um luxuoso lodge cinco estrelas com cozinha gourmet chamado Lodge Lakutaia. Banho privativo com banheira, cama King Size com seis travesseiros e mini campo de golfe no gramado de entrada. Para não dizer que tudo era perfeito, cavalos pastavam no campo de golfe e cavavam buracos com as patas. Não costumo fazer essas concessões em viagens de trekking, mas confesso que não me arrependi. A mordomia ajudou muito a compensar a dureza dos próximos cinco dias de caminhada.

Enquanto buscava hospedagem estudei o clima da ilha e cheguei à conclusão que a situação exigia práticas budistas de desapego, realização da impermanência e profundos exercícios de aceitação. Em um mesmo dia fui chicoteado por rajadas perniciosas de vento, causticado por radiação solar encharcada de raios UV, resfriado por flocos de neve e pedras de granizo arremessadas pelo vento de nuvens longínquas, empapado de chuva fria e congelado pelo frio quando o vento vinha do sul, direto da Antártica. Quando comentei que o dia estava bonito com uma senhora, que me vendeu deliciosas cerejas, ela respondeu com secura: “não se alegre com isso”. Quando entrei em um café para esquentar o esqueleto com um pouco de chá, encharcado de chuva repentina, e comentei que o tempo estava horrível para o verão, a moça atrás do balcão comentou: “não se preocupe, daqui a pouco ele muda”. Penso no Buda e respiro fundo.

Na única loja de equipamento de aventura do povoado, consegui informação adicional e atualizada, já que o mapa que eu possuía tinha dez anos de idade. O proprietário do negócio explicou detalhadamente em que pontos a trilha desaparecia por conta de alagamentos provocados por castores, deslizamentos de terra e pedras, quedas de árvores ou simplesmente falta de uso.

Os castores foram introduzidos na Argentina na década de 30, em uma ridícula tentativa de aquecer a economia local através da caça e do comércio de peles. Sem predadores naturais, clima mais ameno que o canadense, farta oferta de alimento e uma infinidade de cursos de água, o bicho cresceu, prosperou, se multiplicou e, para piorar, perdeu a pelagem característica que lhe garantia valor comercial. Insatisfeito com a Argentina (segundo os chilenos) o castor atravessou a nado o Canal Beagle e está vorazmente destruindo os bosques foguinos dos dois lados da fronteira. A doninha também foi importada da América do Norte pela mesma razão e agora devora ovos e filhotes de aves, ameaçando espécies de pássaros endêmicos. Para completar, na década de 80 ambientalistas colocaram tanto o castor quanto a doninha na lista de espécies protegidas e, portanto, elas não puderam ser caçadas e controladas até poucos anos atrás.

“Mas o maior problema são os cachorros selvagens,” explicou o dono da loja de artigos de aventura, enquanto se servia de mais um mate. Segundo ele, os militares ficam de três a quatro anos estacionados em Navarino e, quando vão embora, nem sempre levam seus cachorros com eles. O resultado foi que muitos cães fugiram para os bosques, subiram as montanhas a procura de alimento e se tornaram selvagens. Hoje vivem em matilhas e praticamente eliminaram a população de guanacos, comendo seus filhotes. “Fique atento, se ver algum cachorro não vá pensar que é manso e não deixe comida exposta nos acampamentos”, completou.

Aparentemente nunca houve acidente com turistas envolvendo cachorros selvagens na ilha, nem os locais tiveram problemas maiores que carneiros mortos, comida roubada e lixo revirado. Mesmo assim, trekking na Ilha Navarino parecia mais complicado do que eu havia imaginado. Pensei em perguntar se algum tipo de peixe predador, uma piranha polar ou tubarão peludo, foi introduzido nos lagos e rios, mas fiquei quieto. Melhor ficar na tranquilidade da ignorância.

Bem informado e com uma pedra redonda de prontidão no bolso, comecei o primeiro dia de trekking do circuito Dientes de Navarino. Da cidade, a trilha segue até o topo do Pico Bandera, onde tremula uma gigantesca bandeira chilena lembrando os argentinos do outro lado quem é o dono da casa. A crista da montanha segue paralela a uma vale verde com uma grande lagoa no fundo. No final dessa lagoa, atrás da montanha por onde segue a trilha, está o primeiro acampamento, na Laguna del Salto. Foram apenas 8,32 quilômetros de caminhada, com mais de mil metros de metros acumulados de subida e as quatro estações do ano em quatro horas de trekking descontadas as paradas.

Na Laguna del Salto encontrei um alemão, muito magro e com as roupas surradas, todo encolhido atrás de uma mochila quase do seu tamanho. Ele caminhava da direção oposta à minha, como se fizesse a trilha em sentido horário – o que fui informado ser impossível, devido a uma descida de mais de 45° no quarto dia de caminhada, sobre terreno pedregoso e escorregadio. Pergunto se está tudo bem e ele explica que se perdeu nas montanhas, logo depois do Paso Australia, o “crux” de navegação da travessia. Teve que dormir bivacado durante uma tempestade de neve e estava voltando para a cidade. Confirmei com ele algumas informações e fui montar a barraca com um aperto no estômago. Fome e ansiedade.

Apesar do clima inóspito, os índios locais viviam nus, besuntados em gordura de leão marinho e baleia como isolante térmico. Eram seminômades, remavam canoas feitas de casca de árvore. Os homens caçavam leões marinhos e as mulheres mergulhavam (mesmo no inverno) à procura de mariscos e centollas. Na primeira passagem do Beagle pelo canal, quatro indígenas yamana foram levados à Inglaterra para estudo. Entre eles estava o famoso Jemmy Button, que na segunda viagem do Beagle voltou para a Ilha Navarino e guiou as expedições locais do capitão Fitzroy e de Darwin. Em 1882-1883 uma expedição francesa de astronomia foi enviada à Ilha Navarino para estudar a proximidade de Vênus. A bordo havia dois médicos que, provavelmente enfadados com a viagem, passaram a estudar os índios. As fotos mais antigas de yamanas datam dessa viagem e fazem o maior sucesso entre os turistas em camisetas, canecas e cartões postais. Índios com pinturas corporais de rituais e chapéus pontudos de casca de árvores.

Na Laguna el Salto ensaiei um mergulho experimental, para vivenciar a experiência aborígene de contato com a água, mas bastou pisar na lagoa gelada para desistir envergonhado. Adriana tirou a roupa e, sem piscar, mergulhou. Emergiu segundos depois, sem mariscos mas com um sorriso de superioridade levemente estampado no rosto. Lembrei que os homens yamana nem sabiam nadar, então, mesmo sem jeito, disse para mim mesmo que minha covardia era natural e historicamente explicada. Os homens locais não caíam na água fria, mas caçavam leões marinhos de mais de uma tonelada com míseros pedaços de pau!… Para minha sorte não havia nenhum leão marinho por perto para comprovar meu argumento.

O segundo dia nos levou até a Laguna Escondida, apenas 8,35 quilômetros adiante e pouco mais de quatro horas de caminhada descontadas todas as paradas. Mas esse é um dia de muitos pasos, ou passagens altas nas montanhas: Paso Primeiro (705 m), Paso Australia (795 m) e Paso de los Dientes (709 m), sendo que a Laguna el Salto está a 504 metros acima do nível do mar. Um paso significa muita subida e muita descida concentradas e a possibilidade de tempo ruim no cume, inclusive com nuvens de tempestade muito baixas e visibilidade perto de zero. Foi o que aconteceu com o turista alemão.

Logo depois de vencermos o Paso de los Dientes fomos agraciados com a visão da silhueta do arquipélago do Cabo Horn no horizonte sul. Pirâmides de pedra erguendo-se do mar. Parecidas com as famosas ondas piramidais do Mar de Drake, entre o arquipélago e a Península Antártida. Incontáveis embarcações naufragaram tentando contornar esse marco natural e ícone marítimo.

Nesse segundo dia o obstáculo mais difícil não é constante sobe e desce. O terreno repleto de rochas de todos os tamanhos leva o troféu. Caminhar com mochilas pesadas, com toda a tralha de acampamento e comida para cinco dias, sobre pedras pontiagudas e instáveis, cansa e desgasta. São raros os bosques nesse dia.

A flora na Tierra del Fuego é curiosa se comparada à rica vegetação brasileira. Existem apenas quatro tipos diferentes de árvores em toda a zona, de quase 74 mil quilômetros quadrados de área. Em compensação um único pedacinho de terra de um metro quadrado pode armazenar centenas de fungos, liquens, micro-orquídeas e afins. As árvores crescem até a altitude de 500 metros acima do nível do mar, depois disso só há rochas e eventuais flores silvestres de montanha – criaturinhas rudes, de aparência ressequida, verdadeiras guerreiras capazes de sobreviver onde a vida é artigo de luxo e que ainda produzem cores vibrantes, como um sussurro de vida no monólogo cinza da paisagem.

Diferente da Laguna El Salto, onde acampamos em terreno esponjoso conhecido como turba, na Laguna Escondida tudo é rocha. O vento sopra particularmente agressivo nesse pedaço da travessia e conseguimos um curral de pedras onde abrigar nossa barraca, que resistiu heroicamente à surra de lufadas de mais de 100 quilômetros por hora no meio da noite. Um castor solitário nadava no meio da lagoa, dono do pedaço, latifundiário incontestável da represa natural. Por mais charmosos que pareçam, depois de caminhar por bosques destruídos por esses bichos, minha compaixão budista desapareceu e tudo o que eu pensava era fazer um chapéu do animal. Um adereço à moda Daniel Boone.

O terceiro dia seguiu até a Laguna Martillo, a míseros 7,22 quilômetros adiante, percorridos em três horas de caminhada fora as paradas. Logo no começo do trecho tivemos que atravessar um rio volumoso proveniente de uma represa de castores. Fiquei quase meia hora procurando o melhor ponto de travessia sem precisar tirar as botas e enfiar as pernas na água gelada. Um chapéu e agora um par de luvas de pelo de castor giravam na minha mente. O trajeto contorna uma vertente montanhosa pela esquerda e sobe em seguida o Paso Ventarón, que até no nome tem vento forte. Imponente e impiedoso, esse paso soprava em nossas caras muito frio e pequenas bolinhas de neve congelada, uma espécie de granizo muito branco e seco, que ricocheteava em nós antes de cair no chão para derreter. O dia estava escuro, mas tínhamos que caminhar de óculos se não quiséssemos levar pelotas de gelo nos olhos. Ventarón é o ponto mais ao sul da travessia e além de representar a metade do circuito, depois de cruzá-lo temos a nítida impressão que começamos o “caminho de volta para casa”.

Baixamos do paso até um vale repleto de lagoas e sempre na direção de um pico mais pontiagudo adiante, exatamente a noroeste. Esse é o Cerro Clem, de 890 m, e posicionado entre a Laguna Hermosa e a desejada Laguna Martillo – nosso destino para o dia. Muitos dos nomes dos pontos geográficos na ilha são recentes. O Cerro Clem, por exemplo, é de 2001 e foi uma homenagem do Ministerio de Recursos Naturales chileno ao aventureiro e escritor australiano Clem Lindenmayer (link para texto sobre ele aqui no blog), autor do guia Trekking in the Patagonian Andes, publicado pela Lonely Planet em 1992. Clem Lindenmayer também foi o idealizador da travessia Dientes de Navarino. Vizinho ao Cerro Clem, a noroeste, estão os Montes Lindenmayer. Fitzroy e Charles Darwin visitaram diversos pontos de Navarino e ajudaram a consolidar nomes indígenas de pontos geográficos ou batizaram lugares com nomes europeus. Bons exemplos são as baías de Wulaia, na costa oeste, onde o religioso Fitzroy fez sua primeira experiência missionária na Terra do Fogo, em 1833, e o grande lago Windhond, no extremo sul da ilha.

Nesse quarto dia de trekking chegamos à Laguna las Guanacas e percorremos o trecho mais espetacular do circuito. Foi novamente um dia de passagem alta pela montanha. Subimos o Paso Virginia, ponto culminante da travessia com 869 metros, escalando 470 metros verticais em apenas 2,8 quilômetros de caminhada.

Se a NASA pensa em organizar passeios na lua um dia, o Paso Virginia seria um lugar perfeito para treinamento e simulação. De longe, a abertura no recorte das montanhas dá a falsa impressão que a passagem é “logo ali”, no topo do morro. Uma vez na boca do paso, de onde desce um gélido rio, o cume parece não chegar nunca. Uma lagoa de metade água e metade gelo é o único ponto de descanso para os olhos, que só enxergam rochas para todos os lados. Totens de pedra indicam o caminho e, felizmente, sempre há um totem mais adiante, lembrando as ilusões de ótica característica de desertos. Quando finalmente chegamos ao ponto mais alto, o queixo cai. Um terraço de gelo precariamente pendente se debruça sobre um declive de mais de 45° de inclinação, de pedregulhos e pó de pedra, que termina às margens de um corpo de água oblongo, como uma gigantesca banheira escavada na pedra. Essa é a Laguna los Guanacos. Mais além se distingue nitidamente degraus na paisagem que descem até o Canal Beagle e o fim da travessia.

O vento no topo do paso estava tão forte que quase arrancou o GPS da minha mão. Tentar fazer anotações seria ridículo. Adriana teve problemas ao meu lado, balançando de um lado para outro numa dança esquizofrênica, perdida entre o desequilíbrio e a agilidade. A capa de chuva de sua mochila havia se transformado em pára-quedas e a chacoalhava feito espanador na mão de faxineira. O vento era constante e forte, com lufadas regulares dignas de furacão. Não havia perigo muito maior que um tombo e joelhos ralados, mas a altura da montanha adicionava uma dose de pânico. Com a rapidez que o momento exigia e as condições permitiam, consegui arrumar a capa de chuva da Adriana, guardar meu GPS, segurar meus óculos de sol que pretendiam decolar e manter meu próprio equilíbrio. Começamos a descida e dez metros adiante o vento desapareceu completamente, cortado pelo topo do paso. Parecia outra dimensão.

A inclinação da descida era tão acentuada e uniforme, em sua tonalidade cinza-grafite, que duvidei um instante se era viável. “Só se for rolando”, pensei com meus bastões de caminhada. Dei o primeiro passo e escorreguei por uns dois metros, patinando e deslizando como se estivesse em esquis de neve. Outro passo e outra esquiada. Mais fácil e muito mais divertido do que eu havia imaginado. 300 metros de desnível em 600 metros caminhados diagonalmente. Tudo com um sorriso no rosto.

A Laguna las Guanacas deixou de ser uma lagoa faz pouco tempo, depois que caçadores autorizados pela nova legislação explodiram com dinamite as represas feitas por castores e caçaram os animais. Controle ambiental. Chapéu novo para todo mundo. O local agora é um labirinto de canais castoreiros que se transformaram em inúmeros riachos. Acampamos ao lado de um deles. No final do dia foram 10,61 km percorridos em quatro horas e meia, descontadas todas as paradas.

O último dia de caminhada pode facilmente ser incluído no quarto dia, são apenas 4,60 quilômetros até a estrada que percorre toda a costa norte de Navarino e de onde se pode conseguir uma carona até Puerto Williams. O caminho inicial segue por trechos de bosque intercalados por áreas rochosas. A trilha desaparece diversas vezes ou se confunde com caminhos de vacas e cavalos. A direção é uma só – para baixo em direção ao Canal Beagle. Mas nossa relativa falta de sorte nos obrigou a caminhar até a cidade, perfazendo 12 quilômetros totais nesse quinto dia, percorridos em quatro horas já descontadas as paradas. Tudo bem, o vento forte e constante no sentido oeste-leste, característico do Beagle e com força suficiente para dobrar árvores, nos empurrou gentilmente adiante. O mesmo vento que nos amontoa.

Balanço final do circuito Dentes de Navarino… Total de 49,31 quilômetros, em 5 dias de caminhada e 4 noites de acampamento selvagem, exatos 3.734 metros acumulados subidos e o mesmo tanto acumulados de descida, já que o percurso é circular, nosso cronômetro marcou 18 horas e 46 minutos de trekking descontadas todas as paradas e o número absoluto final foi: 2 brasileiros bastante felizes.

Guia de Trilhas Trekking (Vol. 2)
Guilherme Cavallari
2009
Kalapalo Editora
https://www.kalapalo.com.br/

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