LA PICOTA – NARRATIVA DE AVENTURA DE JAVIER CENCIG

9 de novembro de 2021

INTRODUÇÃO de Guilherme Cavallari:

Um blog é algo pessoal. Nesse espaço venho escrevendo e publicando artigo exclusivamente produzidos por mim, com o objetivo de passar uma mensagem de vida simples, vida ativa, autossuficiência, arrojamento e criatividade. Mas uma parte importante do meu trabalho à frente da Kalapalo Editora, como autor de livros e de filmes, como instrutor de atividades de aventura, como líder de expedições didáticas, é orientar, inspirar e incentivar outras pessoas a viver uma vida rica em aventura também. Faz um tempo, decidi que meu blog deveria refletir também as expressões das pessoas que, de alguma forma, foram tocadas pelo meu trabalho.  Esse é um trabalho de um aluno que virou amigo, alguém bastante presente e assíduo nas minhas atividades. Desfrutem das experiências, bastante pessoais, de Javier Cencig na EXPEDIÇÃO RUTA DE LOS PIONEROS (link para meu relato completo dessa aventura) realizada em janeiro de 2020. 

LA PICOTA

TEXTO: Javier Cencig (www.jecfotografia.com.br) (http://atreitoasoliloquios.blogspot.com/) (Instagram: https://www.instagram.com/javiercencig/
FOTOS: diversos

Esta é a história de um medo. Sim, poderia dizer que se trata da história de diversos medos que penetraram cada recôndito de uma vida, mas mais acertado é dizer que se trata de um medo e suas múltiplas facetas. Poderia dizer agora, sem mais rodeios, de que medo falo, dar-lhe nome e sobrenome, mas seria predispor o leitor a ver nele um tipo específico de medo e ignorar as suas tantas outras facetas, fazendo, aí sim, com que fosse incoerente dizer que se trata da história de um medo. Mas, sem mais, comecemos.

E não vejo melhor forma de começar, embora certamente haja formas bem melhores, do que contar como foi a noite do dia 14 de janeiro de 2020, esse ano atípico em que o mundo pasmou diante de um vírus. Mas nada tem a ver com o vírus, naquele então nunca tínhamos ouvido falar dele e seria provavelmente a última das nossas preocupações.

Um aviso, porém: se começo por este episódio recente e que talvez nem seja de todos o mais significativo, deverá ser pelos motivos inconscientes que tentam a todo custo me impedir de ir fundo às suas origens, quando pela primeira vez se infundiu em meu corpo, apossando-se dele com a pretensão de jamais soltá-lo. Mas decidi permitir o desenrolar do jogo da consciência, confiante de que no momento certo saberei passar-lhe a rasteira para trazer à luz sua verdadeira essência.

Mas voltemos ao dia 14 de janeiro, ao calor conquistado a duras penas naquela barraca graças à tecnologia ultraleve do saco de dormir, da jaqueta de pluma de ganso, da segunda pele térmica e à proximidade de Gustavo, com quem compartilhava a barraca. Não sabia naquele então, mas além da barraca, ambos compartilhávamos a convicção de que morreríamos naquela noite. Cada um a viveu ao seu modo, ao dele provavelmente jamais terei acesso, mas eu sei e espero poder fazer com que o leitor saiba como eu o vivi.

Enquanto a neve se acumulava nas paredes da barraca, o vento uivava e balançava as copas das árvores fazendo cair esporadicamente flocos de tamanhos variados sobre o teto da barraca que se vergava com o impacto. Meus olhos recusavam-se a se fechar, assim como o meu corpo se recusava a dormir, olhando fixamente à sombra do movimento que os flocos desenhavam sobre a barraca. E minha mente não parava por um instante sequer de torturar-me com os piores pensamentos. Estávamos bem, fazia muito frio lá fora, mas estávamos suficientemente aquecidos, estávamos bem alimentados e tínhamos suprimentos para mais alguns dias se necessário, não tínhamos fome, embora não tivéssemos o luxo da alimentação abundante e flatulenta do nosso dia a dia urbano. Estávamos próximo da saída da trilha e podemos dizer que estávamos apenas relativamente perdidos. Digo relativamente, pois sabíamos para qual direção ir, tínhamos mapas, GPS e até um equipamento para pedir socorro, se necessário. Mas, ainda assim, tínhamos passado o dia andando na neve, sem roupa adequada para esse tipo de ambiente, sem encontrar a trilha. Os mais de trinta centímetros de neve tinham coberto completamente a trilha e todas as indicações que possuíamos haviam se perdido sob o manto branco.

Voltarei um pouco para circunstanciar melhor a sensação daquela noite. Era o sexto dia de trilha e estávamos próximo do passo La Picota, o trecho mais emblemático e difícil da trilha, que deve seu nome à expressão em espanhol da região que diz que “el que no pica no pasa”. Traduzida livremente seria algo assim como “quem não rala não passa”. Não é à toa que no final da passagem encontramos jogada entre um amontoado de pedras uma picareta enferrujada. A maioria das pessoas que percorrem esta trilha o faz no sentido inverso ao que fizemos, pois em La Picota não é somente a superfície escarpada que assusta, mas também um agressivo rio de degelo que dependendo do dia pode mostrar-se instransponível. Desta forma, percorrer a trilha começando por esta passagem oferece a vantagem de esperar o momento mais adequado para atravessar. No sentido contrário, quando os suprimentos começam a escassear, não conseguir passar pode representar um desafio significativo ou, em última instância, fazer com que o aventureiro tenha que retornar por todo o trajeto que já fez, mas com muito menos suprimentos. Esse era o nosso caso.

Por subestimar as dificuldades que encontraríamos, andamos a um ritmo lento nos primeiros dois dias da trilha, confiantes de que seria possível terminar com tempo de folga para retornar e pegar o voo de volta para casa conforme o planejado. Prevíamos até um dia de descanso no meio do caminho. Doce ilusão, essa confiança foi por terra quando avaliamos o quanto faltava e a real dificuldade do terreno. Assim, já a partir do terceiro dia, começamos a impor um ritmo que ia bem além do que seria uma trilha tranquila. Passamos a percorrer distâncias superiores a 20 quilômetros que, em um contexto urbano, pode parecer relativamente tranquilo. Porém os obstáculos do terreno, a alternância entre subidas e descidas íngremes, pedras soltas, troncos caídos, a travessia de rios, os “moscones” (mutucas) nos devorando quando atravessávamos áreas mais quentes de bosque, o frio e o vento cortante quando não havia “moscones”, a alimentação reduzida, o peso dos vinte quilos da mochila nas costas, as bolhas no pé, tudo isso somava-se dia a dia, tornando cada quilômetro uma conquista. O fato é que de ser uma trilha que alternaria momentos de descanso e relaxamento com trabalho árduo, restou apenas este último. Não é uma queixa, pois quem souber entender esse trabalho árduo perceberá que ele nada mais é que a vida em toda sua potência. Não digo isso como lição de moral de quem a viveu, pois para mim, naquela hora, era mesmo trabalho árduo. Muito precisou acontecer para que agora eu possa lembrar desses momentos como trabalho árduo, sim, mas como o prazer da vida que acontece em toda a sua potência.

Nesse sexto dia estávamos realmente muito cansados, havíamos feito já três dias extenuantes, mas não podíamos relaxar o ritmo, sob pena de perder o voo de volta. Já tínhamos andado mais de dez horas e de acordo com a descrição que tínhamos da trilha encontraríamos logo a “Terraza de la Picota”, último ponto em que era possível acampar antes de atravessar La Picota. A neve não dava trégua e nossos pés afundavam quase até o joelho em alguns pontos. Não tínhamos equipamento específico de neve, pois se tratava de uma trilha versátil e ultraleve feita no verão austral, quando a maior parte do trajeto não apresenta neve, motivo pelo qual esses equipamentos seriam um peso excessivo e desnecessário nessa maior parte. Andávamos com uma calça impermeável de chuva, uma segunda pele sem nenhuma função térmica, uma jaqueta impermeável leve para chuva, gorro já encharcado, luvas igualmente encharcadas, meias de merino dentro de botas de trilha impermeáveis, mas que naquela altura eram apenas uma forma de acumular mais água dentro. A nossa única fonte de calor era o movimento constante, não podíamos parar. A última parada tinha sido para comer algo rápido dentro de uma espécie de cratera que nos oferecia relativa proteção do vento.

O restante do dia, fora andar e andar no cume daquelas montanhas tentando imaginar onde poderia passar a trilha, com base em indicações imprecisas e na intuição de Gustavo e Guilherme, ambos mais experientes em desbravar trilhas. Eu, somente andava, confiando em que ambos sabiam onde estava o norte, pois eu olhava ao redor e tudo que era capaz de ver era a alvura da neve cobrindo tudo. Talvez naquele momento começou a formar-se a convicção que a noite não me deixaria dormir de que morreríamos ali. Pois buscar um horizonte e ver apenas neve e mais neve pode ser aterrorizador para quem não consegue mais distinguir norte de sul, leste de oeste. A sensação que tive foi similar à primeira vez que senti pânico durante um voo, foi quando sobrevoava a Amazônia em direção à Venezuela. Até aquele dia nunca tinha tido medo de voar, para além do que deve ser o normal, mas quando vi embaixo de mim aquela quantidade interminável de copas de árvore, senti uma impotência que se apossou de mim e uma necessidade desesperada de descer que já me fazia sofrer só de cogitar que em alguns dias deveria voltar. Foi a primeira vez que senti pânico ao voar, que me acompanhou durante anos até que outros episódios extremos da vida me permitiram superá-lo, mas disso não falaremos nesta ocasião. Voltemos, por ora, à neve sob os nossos pés.

Segundo a descrição, como dizia, estaríamos a uns trezentos metros da Terraza de La Picota, último ponto onde poderíamos acampar antes da travessia. Continuamos andando no afã de encontrar o caminho e passamos pela Terraza sem identificá-la. Talvez pelo cansaço e, no meu caso, pelos olhos demasiado urbanos que esperavam encontrar algo similar a um terraço, plano, confortável, onde faltariam apenas garçons para pegar o nosso pedido, passamos batido por um apanhado de árvores que criavam uma pequena área onde caberiam apertadas duas barracas. Continuamos andando mais alguns metros e encontramos uma descida extremamente íngreme e no final dela um violento rio que sorria provocador para nós. De longe, o Guilherme já deixou escapar sua expressão “nem fodendo”. Devíamos decidir o que fazer, atravessar aquele rio assassino, cansadíssimos daquele dia duro e sem saber quanto tempo mais teríamos que andar para encontrar um ponto para acampar, se conseguíssemos acampar, ou voltar e achar a tal Terraza.

Por sorte, optamos por voltar, e digo por sorte agora, mas naquele momento eu não sabia distinguir o que era pior. Atravessar o rio assassino e continuar andando sabe-se lá até quando ou retornar por aquele morro íngreme que acabáramos de descer, pois como apregoa a boa lógica já conhecida de qualquer trilheiro ou ciclista, a descida nada mais é que a subida no sentido contrário. E voltar a subir aquele morro, na neve, agarrando-se aos bastões de caminhadas debilmente cravados a cada passo, sabendo que o destino era simplesmente um ambiente incerto e hostil onde talvez conseguíssemos acampar, foi uma experiência aterrorizadora. O cansaço, o frio e a fome acumulavam-se e confesso que pela primeira vez na vida senti um esgotamento tão grande que por momentos cheguei a pensar “vou me jogar daqui, basta um pequeno salto e acabou tudo, pelo menos vou descansar”. Devo explicar, não para gabar-me de qualquer coisa, pois se este escrito tem alguma função certamente não é o de me gabar de nada, pelo contrário, desnudar muito daquilo pelo que jamais me orgulhei, enfim devo explicar que tenho em geral um bom preparo físico e nunca antes na vida tinha tido a sensação de esgotamento, mesmo após quatros horas seguidas de futebol, seis horas seguidas de atividades físicas, horas de ensaios de teatro físico baseados em técnicas de exaustão, nada. Claro que me arrancaram suor, às vezes câimbras e até contraturas, mas jamais esse esgotamento que me fazia pensar “prefiro pular e dar cabo disto agora”. Talvez o componente diferente aqui fosse justamente o emocional, o saber que no fim do que fosse não me esperava o chuveiro quente e uma cama superking, mas sim mais frio e incertezas.

Mas o suplício da subida de volta à Terraza terminou e sob as instruções nervosas de Guilherme, começamos a montar duas barracas. Em todas as noites anteriores havíamos dormido cada um na sua própria barraca, montada com tranquilidade. Desde o primeiro dia, Guilherme insistia que talvez fosse melhor montar somente duas barracas e dividir o espaço, assim perderíamos menos tempo com montagem e desmontagem. Mas nós três fomos unânimes em preferir ficar cada um no conforto da sua doce barraca e Guilherme foi voto vencido. Nesse dia, porém, a ideia não foi só dele, todos concluímos apressados que era a melhor opção. Otimizar a montagem, fazer tudo o mais rápido possível, enquanto uns montavam a barraca, outros protegiam as mochilas, apanhavam água, e, além disso, a proximidade dos corpos ajudaria a manter o calor. Guilherme cozinharia dentro do avanço da sua barraca. Tudo para minimizar o impacto do frio ameaçador. Comemos a gororoba habitual, que, no entanto, sempre sabe à manjar naquelas circunstâncias, seguida de uma barra de chocolate e muito chá. Depois era hora de enfiar-se no saco de dormir e fazer jus a seu nome, entregando-se ao sono reparador.

Mas aí começaram talvez os maiores tormentos, enfrentar o mundo psíquico disposto a boicotar o sono. Naquela hora eu já não tinha controle de nada, na verdade, sabia bem que em nenhum momento temos qualquer controle, mas ao estar acordado e com a atenção voltada para as escolhas, temos a impressão de ter o controle. Já ali, nada havia a se fazer, a não ser entregar-se ao sono para reparar o corpo e prepará-lo para o dia seguinte que prometia ser muito duro, pois teríamos que escolher entre atravessar La Picota ou continuar andando à procura de outra solução. Eu sabia que o dia seguinte seria o dia seguinte, que agora precisava descansar, há anos esforço-me para pôr em prática o raciocínio absolutamente lógico de que só temos o agora e viver o futuro ou o passado é só uma forma de o evadir. Então, basta entregar-se ao sono. Mas que merda! Se basta apenas entregar-se ao sono reparador, por que não consigo? Estou tão exausto! Preciso dormir, deixe-me dormir, se morrer, morreu! Mas quero dormir! Pronto, fecho os olhos e durmo. Durmo, durma! E se não conseguir dormir, exausto como estava, amanhã estarei ainda pior. Mais esgotado, mais fraco, certamente não conseguirei superar La Picota, preciso dormir! Olha como o Gustavo dorme, até ronca, durma! Não vou conseguir dormir, pronto, amanhã estarei um bagaço, aliás, já nem é amanhã, é hoje, pois já são mais de meia noite. Que horas serão? Deve ser uma da manhã, paramos de andar a isso das onze da noite, já deve ser uma da manhã. Se eu conseguir dormir agora, acordaremos umas oito horas, serão pelo menos sete horas de sono. Mas sei que não vou dormir tão rápido, então, calculemos que durma às duas, isso, às duas. Serão seis horas de sono, já é algo, dá para descansar um pouco, mas tem que ser antes das duas! Pois cinco horas serão pouco descanso. Droga, já são quase três, nada de conseguir dormir. Está bem, vou desistir de dormir, mas se pelo menos ficar quieto e a mente se calar, vou recuperar um pouco as forças. Nada, vou tentar dormir de lado.

Numa dessas tentativas desesperadas de achar a posição ideal, enganchei a minha mão na tampa da válvula do isolante térmico inflável que, em um estouro, se esvaziou. Gustavo, levanta a cabeça com os olhos arregalados e antes que eu conseguisse pedir desculpas pelo barulho, ele solta: “Nossa, ufa, que bom, estamos vivos!”. Demos risada e ele voltou a dormir, deixando-me de novo só com meu inferno. Olho para o lado e a barraca já estava soterrada por vários centímetros de neve, vários quilômetros de incertezas. Mas aquela neve soterrando a barraca nada mais era que calmaria da neve precipitada, a natureza sendo o que deveria ser, e eu nada mais precisava ser também, mais nada. O que me soterrava eram todos aqueles pensamentos catastróficos, na verdade, passei o resto da noite, pensando na fraqueza muscular que teria por não dormir e que me deixaria em desvantagem em relação aos meus afortunados colegas placidamente entregues às forças de Morfeu. Eles conseguiriam atravessar La Picota e contar a história da heroica sobrevivência na trilha, com alegria, apesar do pesar da perda de um dos colegas, “façamos uns instantes de silêncio e logo continuemos brindando”. Quero dormir! Não quero ser esse colega, não quero ser o cadáver que alimentará os sobreviventes da Cordilheira, prefiro ser o antropófago inevitável! Não tenho caneta aqui, escreveria no celular, se não estivesse tão frio, queria escrever para a Inara, pedir desculpas por todas as burradas que fiz na vida que a afetaram, por me embrenhar em uma trilha idiota, perder-me na neve e nem sequer voltar a tempo para o nosso aniversário de casamento. Desculpe-me por ser tão egoísta, desde a infância, acho que minha casa mais segura sempre foi meu ego, e por isso também minha casa mais frágil, me desculpe, Inara. Te amo…

Começa a amanhecer, já consigo ver o clarão do céu que, apesar da luz, nada alterou o cenário branco, a fímbria de calor do amanhecer mostrava-se tão impotente como nós para aquecer aquele gelo interminável. Vamos tomar o café da manhã. Gustavo incumbe-se de buscar a água, Guilherme prepara o café da manhã, a habitual gororoba de granola com água quente e leite em pó, esta sim cada vez mais difícil de engolir. Comemos o mais rápido que pudemos, desmontamos as barracas, cagamos como pudemos, e pronto, podíamos sair para mais um dia de incertezas. E eu, alquebrado pelo sono, pela noite mal dormida, com certeza, seria o cadáver abandonado no caminho. Comento com os colegas que mal tinha dormido e, para minha surpresa, Guilherme, nosso líder na trilha diz secamente: “Eu também não dormi nada”. Apesar de não fazer nenhum sentido, aquilo me reconfortou. Ah, não sou o único, então, que foi incapaz de entregar-se ao sono e ficou remoendo preocupações a noite inteira. Então, talvez consigamos todos passar, mesmo não estando em plenas condições. Tudo bem, o cara é um monstro, um especialista, mas também não dormiu. Vamos! Só que aquela breve autoconfiança desmoronou quando a pergunta surgiu: “Então, o que fazemos?”. As opções eram tentar contornar um bosque nevado, tentando achar um caminho alternativo, que coincidisse com a explicação que no início da trilha um aventureiro do Alasca tinha nos dado ou ir logo enfrentar a besta intrépida do rio. Optamos, mesmo inseguros, por procurar a tal trilha alternativa e andamos por quase uma hora em busca de algum indício do caminho. Mas tudo estava coberto de neve e sempre chegávamos a algum ponto cego em que para prosseguir seria necessário desbravar ramos, engatinhar e abrir caminho sem saber se ao final não encontraríamos simplesmente um despenhadeiro. Finalmente decidimos que era hora de enfrentar a besta, por mais aterrorizadora que parecesse, La Picota era a única saída.

Descemos novamente a íngreme encosta em direção ao rio. A descida foi calma, sem pressa, tanto pelo terreno nevado e traiçoeiro como por sabermos o que nos esperava. Guilherme à frente, seguido por Gustavo, Roberto e eu no final da fila. Chegamos ao rio que parecia menos caudaloso que no dia anterior, porém ainda espantava pela força da correnteza da água de degelo. Analisamos os diversos pontos onde a travessia parecia mais viável, sem entrar em um consenso sobre o ponto ideal, que, aliás, parecia não existir. Não havia tempo para tirar as botas, pendurá-las na mochila, arregaçar as calças e vestir as sandálias. O frio não nos permitia parar, era melhor enfrentá-lo de vez sem preocupar-se muito com as botas, afinal, já estavam bastante encharcadas. Depois de algumas apressadas sondagens, decidimos que cruzaríamos no trecho que desembocava exatamente onde começaríamos a subir o morro. E talvez ver o morro que nos esperava do outro lado tenha sido mais desencorajador que o próprio rio. Era uma parede de no mínimo 70 graus de inclinação, coberta de terra, neve e inúmeras pedras soltas de tamanhos variados. Nosso equipamento de escalada: as mãos, os pés e o desejo de sair logo dali. No entanto, algo que rapidamente aprendemos neste tipo de expedição é que é melhor pensar em um perrengue de cada vez. Primeiro, o rio.

A primeira medida, soltar todas as presilhas da mochila para que, em caso de acidente, a torrente não nos arrastasse com ela. Seria uma grande perda ficar sem todas roupas secas e mantimentos se a torrente arrastasse a nossa “casa” naquele momento, mas pior seria se fôssemos com ela. Segunda medida, formar um trenzinho em que cada um segurasse na mochila do indivíduo da frente, assim poderíamos nos amparar uns aos outros em caso de desequilíbrio. Novamente, eu era o último vagão. A água, apesar da força, não superou a altura da coxa e a travessia foi menos difícil do que prenunciava, com exceção de alguns pequenos desequilíbrios nas pedras soltas do leito do rio. Mas nada capaz de provocar incidentes maiores.

Superado o rio, agora sim restava superar a parede à nossa frente. Sinceramente, com exceção de Guilherme nenhum de nós tinha ideia, além da intuição de cravar dedos e pés na terra, de como subir aquilo. Certamente, os bastões de caminhada não serviriam. Era preciso manter o corpo o mais inclinado e rente ao chão, cravar os pés lateralmente no chão, usando a faca do pé para firmar-se o melhor possível e agarrar-se a qualquer arbusto ou pedra que parecesse razoavelmente estável, o que era bastante difícil naquele solo. Novamente, fui o último da fila. Guilherme desbravava o caminho, eu o encerrava. A recomendação era clara, deixar pelo menos dois metros de distância entre cada um de nós, pois se alguém deslizasse haveria menos chance de derrubar o outro. Além disso, as pedras soltas que caíam a cada passo teriam menos chance de alvejar o seguinte. A instrução era clara e bastante lógica, no entanto, o certo é que nenhum de nós conseguiu respeitá-la, talvez em um desespero provocado pela ideia de ficar para trás e não conseguir subir. O fato é que estávamos bastante próximo uns dos outros e as pedras não paravam de rolar. Uma delas, do tamanho de uma bola de futebol veio em grande velocidade em minha direção e apenas tive tempo de levantar o joelho para defendê-la com uma joelhada e mandá-la para longe. Jogo futebol há muitos anos e certamente a semelhança com a bola de futebol terminava no tamanho. Mas acho que pelo calor do movimento ou pelo efeito da adrenalina, a dor foi quase imperceptível diante da miríade de emoções que experimentava naquele momento.

Faltando poucos passos para chegar, os três já estavam no alto, me esperando e encorajando, com constantes instruções nervosas, “usa a faca do pé”, “segura nos arbustos”, “mantém o corpo perto do chão”, “vai, falta pouco”. Meu coração disparava, minha cabeça continuava me torturando com um dos maiores medos que sempre tive, o de quase chegar e não conseguir. O medo de “morrer na praia”, neste caso em “La Picota”, depois de tudo aquilo, depois de tanto esforço, deslizar quando já quase chego ao cume, o avião perder o controle logo na aterrissagem, quando já sentia o cheiro dos “Buenos Aires”, o fim sádico do quase…

Mas não foi dessa vez, aterrissei, consegui. Não lembro se me estenderam o braço para me ajudar a pisar em terra firme e plana, lembro-me apenas dos quatro, rindo e chorando ao mesmo tempo, diante da picareta enferrujada, com uma emoção pueril, embora todos fôssemos já “homens feitos” já mais a caminho até de desfazer-se. Chorávamos, ríamos, brindaríamos com uísque se ainda tivéssemos. E celebramos com a jocosa tradição, que havíamos inaugurado naquela trilha, de parodiar os frios expedicionários britânicos com saudações objetivas e contidas: “Well done, William”, “Good job, Bob”, “Congratulations, Gus”. Tudo seguido de um formal aperto de mão. Mais risos, mais lágrimas, La Picota ficou para trás, parece que sobreviveríamos.

Passada a euforia da travessia, restavam os corpos moídos, molhados e cansados e mais uma longa caminhada pela frente. Mas agora o terreno era plano, pedregoso e molhado, mas parecia que abandonávamos os nove círculos de Dante e agora o caminho assemelhava-se a um purgatório. Um caminho cinzento e sem graça, pedras e algo de neve, pequenos córregos de água gelada e nada mais. Seriam alguns quilômetros assim.

Andamos mais um pouco e finalmente encontramos uma área de bosque, nela uma pequena “cabana”, que não era mais que algumas vigas de madeira amontoadas para cortar um pouco o vento. Aproveitamos para tirar um pouco da água das botas, escorrer as meias, enfiar algumas castanhas na boca, mas tudo com muita pressa, pois o frio ainda era intenso.

Continuamos andando e saindo do limbo cinzento enquanto o bosque ia ganhando o contorno das árvores envergadas pelo vento, muitas delas caídas no caminho. O que antes víamos como obstáculos agora eram apenas mais uma parte do caminho. Enfrentamos ainda algumas subidas e descidas razoavelmente íngremes, mas sempre com a sensação de que o pior ficara para trás. Aos poucos, a vegetação foi ficando mais verde, o frio diminuindo e o sol despontando brilhante no céu ensolarado. Adiante avistamos uma corrente de água, uma cerca abandonada, árvores e um campo todo florido. Uma visão inimaginável apenas sete horas antes. Era como abandonar de vez o limbo e finalmente encontrar o paraíso. Não era um prêmio, pois não havia mérito no que havíamos feito, para a natureza as coisas são e apenas são, nem injustas nem justas, nem inferno, nem limbo, nem paraíso. Apenas são. Entendíamos bem isso, mas, mesmo assim, após todas as dores, os incômodos e, principalmente, os temores do dia anterior, aquela visão parecia a “recompensa dos justos”.

Já mais perto, começamos a ouvir vozes, logo avistamos roupas estendidas na cerca, barracas e fomos invadidos pela sensação ambígua de quem passa dias com o mínimo contato com a “civilização”. Tratava-se de um grupo de estudantes de uma das maiores escolas de aventura do mundo, no geral jovens de origem europeia e americana que pagavam quantias superiores a cinco mil dólares para aprender a explorar a natureza com segurança. O guia, chileno, nos deu as boas-vindas, perguntamos se haveria algum problema em acamparmos por ali. “Claro, que no”. Tiramos todas as roupas molhadas e estendemos a roupa e todos os itens sobre a grama para que sorvessem o máximo possível daqueles benditos raios de sol. Nós éramos mais um dos itens estendidos na grama, secando o corpo e os medos. O sorriso pueril brotava novamente no rosto de cada um de nós. “Well done, guys”.

À noite, após montar a barraca, jantar a gororoba habitual, devorar a barra de chocolate, era hora de dormir, recuperar o sono da noite anterior. Enquanto o vento assobiava sobre o teto da barraca, com força, mas sem a ira da noite anterior, eu pensava em todos os tormentos que havíamos passado. Quantos deles haviam sido reais, quantos haviam sido aumentados pelo meu inferno mental, havíamos corrido riscos? Certamente! Mas nossos olhos urbanos se esquecem no dia a dia de todos os riscos que vivemos, por exemplo, ao atravessar a rua em uma cidade em que os moradores se recusam a aceitar os limites de velocidade, em que relutam a entender um simples código de três cores. Sair de casa é enfrentar toda sorte de perigos, os motoristas psicopatas, as balas perdidas e as encontradas, os assaltos e os latrocínios, as doenças decorrentes das más condições sanitárias, isso sem contar o risco constante do desemprego, da fome, do desalojamento, etc. A hostilidade urbana, mais hostil que qualquer rio de degelo, já não nos assusta e andamos destemidos entre essa “gente ignara e distraída dos bazares de Israel”.

O medo, certamente, era e sempre será um companheiro importante, amigo da prudência e da atenção. O problema reside quando se sente vedete e dono de todo o mundo mental, sabe que seu reinado depende dos perigos e, por isso, exagera e aumenta cada um deles. Tampa-nos os olhos e diz: “Deixe comigo, comando eu”. E, com os olhos vendados, mal vemos o próximo passo. La Picota é assustadora, sim. “El que no pica no pasa” e quem não passa não vê os campos floridos banhados pelo sol. A vida é terrivelmente assustadora, sim. Mas é incrivelmente bela também. Mas só é capaz de ver a beleza aquele que aceita também olhar para o risco. Quem o rejeita a todo custo, não verá jamais o esplendor da vida, somente a cinzenta e falsa segurança de quem acredita que é possível evitá-los. Seria como viver o restante da vida acampando na Terraza de la Picota para não ter que enfrentar a travessia do rio. Não veríamos jamais os campos floridos e, com o tempo, aquilo seria para nós cotidiano, como os carros desgovernados e as balas perdidas e encontradas de São Paulo.

3 respostas para “LA PICOTA – NARRATIVA DE AVENTURA DE JAVIER CENCIG”

  1. Mario disse:

    Relato maravilhoso !!!!!…

  2. Roberto Carneiro disse:

    Grande narrativa Javier e excelentes fotos!
    Revivi todas as fortes emoções que senti durante a expedição.
    Foi uma experiência muito intensa e bem sucedida graças a orientação do Guilherme.
    Vou participar novamente, agora em janeiro de 2022.
    Obrigado pela aventura Javier, Gustavo e Guilherme.

  3. Daniele disse:

    Belo texto! Incrível jornada de vcs!
    Me senti parte dessa aventura e também me identifiquei bastante com as reflexões.
    Obrigada, Javi, por compartilhar!

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