PORQUE NÃO PEDALO BIKE ELÉTRICA…

19 de junho de 2023

Por que não pedalo bicicleta elétrica? A resposta simples é: PORQUE NÃO PRECISO.

Anos atrás, muitos anos atrás, quando ainda vivia na cidade de São Paulo e entregava meus livros pessoalmente em dezenas de lojas e livrarias na metrópole, sonhei com uma bike com motor elétrico.

A tecnologia não existia ou pelo menos não estava disponível no Brasil. Seria uma solução perfeita para o meu dilema: eu queria continuar entregando meus livros, mas não queria contribuir com a poluição do ar, o excesso de veículos motorizados nas ruas, o estresse do trânsito, a ditadura dos carros. Havia um encanto em escrever, produzir, editar e entregar eu mesmo o fruto do meu trabalho.

Eu completava o Ciclo da Autossuficiência.

De tempos em tempos a Internet, em especial certas redes sociais, são invadidas e dominadas por alguém vendendo insistentemente algo. Em geral é um homem branco, relativamente jovem, bem vestido, num ambiente neutro que remete a sucesso. Assertivo e calmo, o sujeito parece deter o segredo da verdade. Se perdermos tempo ouvindo a mensagem até o fim (algo que não faço), não seremos surpreendidos com o anúncio de um curso, um livro, uma filiação.

Tudo arapuca.

Semanas atrás, era um barbudo agitado, indo com pressa a algum lugar exclusivo e importante, dizendo que existe uma classe de empresários presos a velhas noções de gerenciamento. Um tipo de “empresário-escravo”. Não lembro o termo que ele usava repetidamente, como se fosse uma palavra-mágica capaz não apenas de definir como também de libertar do problema. Obviamente, não investiguei o que o barba tinha a dizer. Aquilo não me interessava em nada.

No mesmo período, li em algum post de rede social uma frase que fez mais sentido: “Libertar-se sozinho, às custas do trabalho alheio, não é libertação, é capitalismo.”

Perfeito! Isso faz todo sentido pra mim. 

Não foram poucas as pessoas que criticavam e seguem criticando minha administração empresarial. Essa história de escrever, publicar e entregar meus livros. Por isso, a título de resposta, criei a definição que uso até hoje pra explicar o que faço na minha empresa, a Kalapalo Editora: “Sou autor, editor, publisher, distribuidor e entregador. Passo o cafezinho e lavo o coador”.

Nem precisa dizer tenho orgulho de cada função.

Perco dinheiro com isso? Perco tempo? Perco oportunidades? Deixo de investir em ideias mais lucrativas? Com certeza, mas e daí? Em jargão técnico de marketing, essa verticalização do trabalho, executar todas as funções da cadeia do começo ao fim, limita a produtividade. Ninguém é bom em todas as áreas, explicam os especialistas. Delegar é expandir, aconselham os coachs. Blá, blá, blá…

Vejo por outro ângulo. Cumprindo todas as etapas, mantenho contato estreito com a realidade.

Pra que trabalhamos? Basicamente, quase todo mundo trabalha pra sobreviver. Perder essa realidade de vista é alienação. Uma segunda categoria, trabalha pra enriquecer e acumular. Só isso. Alguns poucos trabalham pra crescer e se desenvolver. Esses entendem que trabalhar não é um ato solitário.

Já fui limpador de chaminés em Boston, carregador de malas em hotel de Londres, catador de batatas em Cambridge, coveiro em Israel, colhedor de maçãs no norte da Itália, entregador de bicicleta em Berlim. Nesses países ricos, todo trabalho é bem remunerado em comparação com nossa realidade tupiniquim, então a equação fica mais fácil. Em paralelo, já fui ator de teatro, radialista, humorista, animador de festa infantil e professor de inglês aqui no Brasil. Sei bem o que é ralar pra sobreviver. Não tem graça.

No Brasil, ser empreendedor com algum sucesso requer não apenas habilidade, mas muita sorte. Primeiro, é preciso nascer branco, homem, paulistano ou carioca, longe da periferia ou das favelas, ter todos os dentes na boca e saber falar bem o português. Coisas que, na maior parte, herdamos sem qualquer esforço. Com isso garantido, já estamos quilômetros à frente da concorrência bem antes do tiro de largada. Viva a meritocracia!

Ser empresário no Brasil de certo não é fácil. Burocracia, carência de infraestrutura, moeda instável, leis obscuras, corrupção, ausência de justiça e mercado interno restrito são alguns dos obstáculos. Não listo excesso de impostos e leis trabalhistas rígidas porque não vejo isso como problema e sim como solução. Empresários mal pagam impostos no Brasil e nossas leis trabalhistas são ignoradas na sua maior parte. O tempo que vivi na Europa abriu meus olhos para o que é uma região que sabe cobrar impostos proporcionais de todos e respeita minimamente os trabalhadores. Por isso a classe média é maioria lá. Simples assim. Garçom na França, por exemplo, não sorri e não leva desaforo pra casa.

Empreender, pra mim, sempre foi uma tentativa de libertação. Nunca de exploração. O único funcionário que tive, era na verdade um sócio minoritário, que ganhava um polpudo percentual de tudo o que a empresa produzisse de valor. Havia um mínimo mensal garantido pra segurar a barra nos tempos de vacas magras. Nos tempos de fartura, ele ganhava como diretor e eu celebrava com ele.

Mas chegou um momento em que a brincadeira de ser empresário deixou de ser interessante. Eu me vi diante de uma bifurcação: ficar mais rico ou ser mais livre. Não precisei pensar muito pra escolher o caminho. Fui pedalar por seis meses pela Patagônia e pela Terra do Fogo.

Entregar meus próprios livros continua sendo um desejo vivo em mim. Hoje moro numa fazenda no interior de Minas Gerais, onde alugo uma casa. Não dá mais pra entregar livros de bicicleta, mas continuo levando os livros de bicicleta até a agência dos Correios mais próxima. Uma viagem de duas horas de duração, ida e volta. Mantenho contato com meus tempos de bike courrier em Berlim.

Sei, por exemplo, o que vive um trabalhador do IFood. Sei o quanto ele deveria ganhar. Valorizo o serviço dos Correios, como estatal presente em todo município do país. Sem esse serviço estabelecido como patrimônio da sociedade, minha liberdade estaria comprometida. Entendo o esforço e valorizo os funcionários que me atendem lá.

E o que isso tudo tem a ver com E-Bike?

Tudo a ver! A bicicleta é uma veículo simples, econômico, barato e democrático. Não conheço outro com as mesmas características e a mesma eficiência. Suas limitações espelham as limitações de quem a pedala. Através da bicicleta, consigo medir meu condicionamento físico, minha saúde, minha disposição. Eu poderia ir mais longe com um motor elétrico? Não, não poderia. Não seria eu quem estaria indo mais longe. Seria o motor.

Entendo quem usa E-Bike como veículo de transporte no lugar de uma moto ou carro. Eu mesmo já pensei nessa solução, como escrevi anteriormente. Mas sei também que se passasse a treinar com uma E-Bike ficaria mais fraco em pouco tempo, não mais forte. Não vejo a E-Bike como incentivo pra nada a não ser pra encurtar caminhos, diminuir esforço, criar dependência.

Não consegue acompanhar os amigos mais jovens, mais fortes, melhor treinados? Treine mais, redefina seus objetivos ou mude de amigos, procure pessoas mais parecidas com você. Em outras palavras, não se iluda e não manipule a realidade pra que ela fique melhor ajustada a você. Essas coisas costumam morder a gente na bunda mais tarde. Essa tendência a acreditar que a realidade deve se ajustar a nós, na psicologia, é chamada de narcisismo. Vale também refletir que, pra sociedade capitalista e consumista, é interessante que todos se sintam insuficientes, carentes, aquém do ideal. A infelicidade é o grande motor da produção e do consumo, que no final consome a nós mesmos.  

Em termos práticos, os motores elétricos nas E-Bike dependem de baterias sofisticadas que não são sustentáveis ecologicamente. Não existe poluição do ar, mas existe mão de obra escrava na extração de metais essenciais na fabricação dessas baterias, como lítio, cádmio e cobalto. Extração mineral é um dos piores crimes ambientais que já inventamos. Nessa atividade, trituramos montanhas e culturas, destruímos florestas e vidas, poluímos rios e sangues. Se eu quiser motor na bicicleta, compro uma motocicleta. Essas baterias têm um curto tempo de vida, exigem troca e investimento, produzem lixo tóxico que raramente é tratado como se deveria. E-Bike não merece selo verde algum!

Não pedalo E-Bike também por uma questão de respeito.

Enxergo a bicicleta como uma revolução, um ativismo contra os veículos motorizados, a indústria do petróleo, a transformação de cidades e paisagens naturais em passarelas de carros. A acessibilidade se espalhando como um câncer em metástase. Chamo a bicicleta de revolucionário também porque ela agride o sistema consumista, que exige que tenhamos sempre “o último modelo” criando inúmeras formas de obsolescências programadas. Motor elétrico é apenas mais uma. A ideia é que todo ciclistas tenha também uma E-Bike. Tô fora!

A pergunta será sempre: eu preciso? 

Fico incomodado com nossa sempre crescente dependência da internet, do celular, do carro, do dinheiro. E vem aí a Inteligência Artificial pra piorar a história. Admiro as pessoas que se comprometem com a autossuficiência, a independência, com o ato de construir um mundo mais livre. Muitos dos meus heróis foram ou são exploradores e revolucionários, gente comprometida com a emancipação do ser humano seja através de atos ou de discursos. Vejo a bicicleta com um veículo de enorme potencial rumo à libertação individual e coletiva. Um veículo simples, eficiente e acessível. A bicicleta na terra e o barco a vela na água permitem ao ser humano dar incontáveis voltas no planeta se assim desejarmos, usando apenas a força do nosso próprio corpo e da natureza.

Por que interferir e perverter essa equação?

Um outro título para esse texto seria COERÊNCIA. 

11 respostas para “PORQUE NÃO PEDALO BIKE ELÉTRICA…”

  1. Fernando Nepomuceno disse:

    Excelente reflexão, Guilherme! Aqui em BH as elétricas já estão “bombando”. Em alguns casos, sendo a primeira bicicleta da vida do sujeito. Terrível. Abraço, meu amigo.

    • gui disse:

      Terrível em todos os sentidos! Conforto e comodismo, dependência e consumismo, isso tudo como primeira experiência numa bicicleta é a própria negação da bicicleta. Feliz de quem pedalou pela primeira vez, na infância, pelas ruas e no mato.

  2. marcelo disse:

    Boa!! eu tambem gosto é da bike como sempre foi, sem essas traquinagens eletronicas, parafernalhas so se for gps, lanterna, bolsa pra bike, etc kkk , é isso ai , o mesmo podemos pensar do carro elétrico, tudo marketing pra vender, mais nada…

    • gui disse:

      Sempre vender mais, sempre encurralar a gente no canto do consumo pra trabalhar mais, produzir mais, comprar mais. Estamos sempre na dívida, econômica e filosófica, sempre atrás do ideal, como se fôssemos, cada um, um projeto mal acabado, insuficiente, devedor. Mas tem peixe que não consegue enxerga a água que o cerca.

  3. mauricio de luna freire disse:

    Boa tarde!
    Tenho um amigo, com uma E-Bike, custou 160K. Participamos de um evento em Caparaó. Tudo ótimo. Sua E-Bike “escalava” e ultrapassava montanhas…parecia voar….até que…rsrsr…acho que ele esqueceu de levar uma bateria reserva…kkk…não aguentou subir pedalando. Claro, como solidários, o acompanhamos até o final do percurso do di (eram 3 dias). Apesar de tudo, mesmo que estando frio, conseguimos jantar…

  4. Raça (cicloviajant 61) disse:

    Sempre que vejo a “estrutura denunciada” sendo usada para a denuncia, me pergunto que tipo de herói quixotesco podemos acabar nos tornado. O barato mesmo é admitir sem nenhum constrangimento ou heroísmo nossas contradições e dependência daquilo que denunciamos como perigoso.
    Isso também não nos impede de chamar atenção para os riscos de nossa insenssatez .

  5. Ricardo Ohf Dalfovo disse:

    Você esqueceu de falar sobre as pessoas que tem deficiência, e precisam de uma ebike para continuar a pedalar. Se eu fosse saudável, teria uma bike “analógica”, que é como chamo a bike movida à feijão, mas não sou, tenho esclerose múltipla, e a ebike me insere no meio dos meus colegas, e posso partilhar de momentos agradáveis e únicos. Com uma bike normal não estaria pedalando com meus amigos, pois 15-30 km, no plano, ninguém faz. Você deveria rever seu conceitos pois existem pessoas que necessitam de uma ebike.

    • gui disse:

      Salve, Ricardo! Não esqueci não, amigo, abri e fechei o artigo com o verbo “precisar”, justamente pra fazer a distinção entre quem precisa e quem não precisa… Leia novamente o artigo. Forte abraço!

  6. Diuk Mourão disse:

    Faltou falar da Ambivalência. A ambivalência da internet e das e-bike, que servirá para quando estivermos mais velhos e não iremos conseguir ir só de bicicleta.

    Acima do bem e do mal, do binário de qualquer assunto, tudo pode ser pensado de como podemos usar os recursos da terra, de forma mais consciente e menos impactante.

    Não tenho dúvida que a forma que usamos o carro ou moto é equivocada. Poderíamos estar fazendo esses mesmos trajetos de forma muito menos impactantes ao meio ambiente.

    • gui disse:

      Obrigado pelo ótimo comentário! A questão principal para mmim nesse tema não é o uso, menos ou mais apropriado, que fazemos das ferramentas que criamos… Mas do uso que fazemos, menos ou mais eficiente, dos potenciais que temos. Potencial físico, intelectual, espiritual. Nos tornamos seres humanos melhores pedalando bikes elétricas ou estamos apenas nos acomodando?

  7. Roberto Carlos Bertolozo disse:

    Tenho uma EBike, e acho o brinquedinho sensacional. Caro ? Sim Sem demagogia. Mas cada um sabe das suas necessidades , tempo e capacidade. Se puder ter , garanto que não arrependerão. Foi ela que tirou o meu medo das longas distâncias. Se não pudesse te-la mais, voltava a boa e velha canela seca. Com 5.0 e somente agora iniciando no bike paking , não me arrependo. Neste caso, Ebikepacking rsrsr

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